Há três meses, a água, a lama e o forte odor do Guaíba avançavam sobre o Muro da Mauá e inundavam diferentes regiões de Porto Alegre — de Norte a Sul. Uma das áreas mais atingidas, o Centro Histórico tem passado por uma evidente mudança de cenário nesses dias que sucederam a maior enchente da história da Capital, durante a qual o bairro ficou submerso por quase 30 dias.
— O Centro é o ambiente mais sortido e consolidado para o atendimento às demandas de consumo da população. O ano passado já vinha indicando um cenário de recuperação. Junho, após a calamidade, teve movimentação animadora. São sinais de retomada que nos deixam otimistas — pontua a secretária municipal de Desenvolvimento Econômico e Turismo, Júlia Tavares.
Conforme a prefeitura e o Sindilojas, grande parte dos mais de 8 mil negócios afetados na região já voltou às atividades. Um deles foi o restaurante de João Vitor Karr, 28 anos, que cita a esperança com o futuro do estabelecimento após o fechamento forçado.
— Quando ergui a cortina pela primeira vez, depois que a água baixou, tive vontade de desistir. Mas pensar em todo o trabalho que foi abrir um restaurante me fez mudar de ideia. Foi difícil, mas recomeçamos. A (Rua José) Montaury tem seu charme, por isso estamos esperançosos — aponta o comerciante.
A cheia superou 1m30cm naquele setor da Rua José Montaury, onde o restaurante está estabelecido desde 2020. Só ele restou. Outros três serviços de alimentação, uma loja de artigos esportivos e uma agência governamental são silêncio e sombra.
Cruzando a Borges de Medeiros, no outro extremo da Montaury, a fresta baixa de uma cortina metálica permite ver a movimentação de trabalhadores, com escadas e latas de tinta. O bazar de variedades tinha reforma já programada, mas 80 centímetros de cheia exigiram a antecipação do plano, explica o responsável pela manutenção, Cláudio Santos, 44 anos.
Ao cruzar a Praça XV de Novembro, a cena se redesenha na Rua Otávio Rocha: placas, anúncios, oportunidades e mais relatos de perseverança.
— Perdemos produtos e equipamentos, mas jamais cogitamos fechar. Lamentamos muito ao ver esses negócios que não tiveram a mesma sorte. Prefiro ver as lojas ocupadas por concorrentes. Comércio puxa comércio — define Orides Selau, 62, gerente há mais de 40 anos de uma casa de vestuário masculino fundada em 1935.
Em outros logradouros, a imagem se repete. General Vitorino, Marechal Floriano Peixoto, Vigário José Ignácio, Dr. Flores, Voluntários da Pátria e Júlio de Castilhos têm fachadas obscurecidas pela inatividade.
Nem mesmo a Rua da Praia, em sua tradição e beleza, escapa do fenômeno. Em endereço nobre, no térreo frontal da Galeria Chaves Barcellos, entre franquias de alimentação nacional e global, o ponto comercial que já hospedou grifes hoje está desocupado.
— Nossa estimativa é de que cerca de 15% a 20% destes negócios impactados ainda não retornaram às atividades. Alguns, infelizmente, não voltarão a funcionar — descreve o presidente do Sindilojas, Arcione Piva.
Basta andar pelas ruas e calçadas bicentenárias da primeira ocupação humana e econômica da Capital para observar tal situação. Para Piva, contudo, o Centro não perdeu sua relevância na geração de oportunidades.
— O grande desafio é atrair mais pessoas para circular, conhecer a oferta de produtos, serviços e consumir nos empreendimentos do Centro. Indisponibilidade do aeroporto e do trensurb, redução na oferta de coletivos urbanos e metropolitanos, aluguéis elevados, concorrência das vendas online são componentes deste cenário desafiador — analisa Piva.
Desafio na mobilidade
Além da restauração da mobilidade, que vai ocorrer gradativamente, o líder empresarial cita a recomendação da entidade pela adoção de valores mais amigáveis para os aluguéis, a defesa da conversão de prédios comerciais em residenciais e a integração com o poder público em pautas comunitárias de segurança e infraestrutura como estímulos à recuperação do Centro.
Pelo setor público, incentivos fiscais e as obras de qualificação urbanística do espaço denominado Quadrilátero Central, pelas quais estão sendo renovadas estruturas de pavimento, drenagem pluvial e iluminação, agregam-se ao esforço de recuperação.