Porto Alegre começou pela rua dos Andradas, naquele vilarejo de 1772.
É o princípio do nosso mundo, o calçadão mais famoso da capital gaúcha, que já foi cantado pelo poeta Mario Quintana e inspirou grande parte de nossos letristas, como Bebeto Alves, Nelson Coelho de Castro, Gelson Oliveira e Antonio Villeroy.
É uma artéria poética, acostumada à explosão do bando de pombas, ao lambe-lambe, ao fluxo de pedestres indo e saindo do trabalho. Um caminho que nos liga ao Mercado Público, ao Paço Municipal, à Usina do Gasômetro, e serve de palco para a nossa tradicional Feira do Livro.
Sua natureza lembra nossas vielas originais, do tempo dos bondes.
Só que os consagrados paralelepípedos estão sendo vítimas de uma esquisita reforma, que teve início antes da enchente.
A partir de edital de 2022, com investimento previsto de R$ 16 milhões e prazo de 18 meses para conclusão dos serviços, a prefeitura está descaracterizando o Centro Histórico.
O propósito era ampliação das calçadas, qualificação das travessias, redução das barreiras de acessibilidade, melhorias na pavimentação, implantação de novo mobiliário urbano, reforço na iluminação pública e ampliação do sistema de videomonitoramento.
O que constatamos, pelo contrário, é uma substituição pavorosa dos materiais, enfeando a cidade.
A Secretaria Municipal de Obras e Infraestrutura (SMOI) vem trocando as pedras antigas de basalto por blocos de concreto, que surgem mal rejuntados.
Não tem como elogiar o trabalho, ou mesmo reconhecer o seu valor. Como falamos no nosso dialeto porto-alegrês, trata-se de uma “chinelagem”. Ou seja, algo de gosto duvidoso, sem noção e de baixo nível.
Em sua delegação de tarefas própria da função, acredito que o prefeito Sebastião Mello não está vendo a mudança, não está acompanhando a transformação do raro vinho para o intragável vinagre. Jamais faria isso em sua casa, pois não teria coragem de receber visitas.
Foi posto no local um piso neutro, horrível, sem nenhum atrativo, sem nenhum vínculo com a nossa história, desprovido dos preceitos e traços açorianos. Não houve a conservação da superfície anterior.
Quem perde é a população residente e o comércio sobrevivente em sua frente — digo sobrevivente porque é difícil manter as portas abertas no meio de uma obra que nunca termina.
Nem acho que é uma alternativa mais em conta, para economizar, já que o valor da licitação não é nem um pouco irrisório.
Moradores da região se mostram inconformados com o desperdício do potencial turístico do lugar.
Custava preservar o cartão-postal?
Se o objetivo é ter uma pegada arquitetônica modernista, qual o sentido da ausência de padrão?
O que testemunhamos é uma colcha de retalhos. São usadas diferentes texturas nas bordas do calçamento e em torno das tampas de bueiros e dos quadros elétricos.
É um Niemeyer Frankenstein.
Somente parece uma cova de cimento, debaixo da qual nossa simpática e folclórica Porto Alegre se encontra, ainda agonizante, enterrada viva.