Aos poucos, o frenesi de gente apressada puxando malas robustas começa a voltar ao normal na Rodoviária de Porto Alegre. Dois meses após a inundação de 3 de maio, o principal terminal de ônibus do Rio Grande do Sul retomou a operação 24 horas na quinta-feira (4), restabelecendo parte da estrutura afetada pela enchente e aumentando em 20% o número de viagens em função do fechamento do aeroporto Salgado Filho.
Com 23 mil metros quadrados de área construída, o prédio inaugurado em 1970 foi considerado à época a maior e mais moderna estação da América Latina. Agora, a administração do terminal projeta a adoção de inteligência artificial na venda de passagens, enquanto corre para restabelecer a energia elétrica nos espaços comerciais onde a água alcançou 2m20cm de altura.
— Estamos chegando ao fim dessa etapa. Perdemos computadores, móveis, mobiliário, quase tudo. Mas não paramos para contabilizar os prejuízos porque focamos na retomada. Assim como o Mercado Público, a rodoviária é um símbolo de Porto Alegre e sentimos isso pela forma como fomos abraçados no dia em que voltamos a operar — diz Rosário Veppo, neto do fundador da empresa que há 85 anos abriu a primeira rodoviária do Brasil e diretor da Veppo & Cia Ltda, gestora do terminal.
O alagamento causado pelo avanço do Guaíba no Centro Histórico deixou a cidade uma semana sem saída e chegada de ônibus intermunicipais. Na sequência, uma operação improvisada funcionou por 28 dias no bairro Agronomia, zona leste da Capital.
Quando a água começou a baixar, no dia 20 de maio, o pavimento da faixa central, por onde transitam os ônibus, estava repleto de buracos. O corredor central seguia submerso e o prédio inteiro sem luz. O salão de venda de passagens perdeu parte do piso e a maioria das lancherias estava destruída, com os espaços cobertos de água, barro e gordura.
— A gente teve situações de chegar de manhã e o nível de água ter baixado completamente, principalmente na parte central, onde foi mais atingido. Se procedeu toda a limpeza e quatro horas depois a água subiu 40 centímetros — conta a diretora de Transporte Rodoviário do Daer, Luciana Azevedo.
Com uma reforma emergencial orçada em R$ 11,5 milhões, a autarquia começou fazendo pavimento novo na faixa de ônibus. Painéis elétricos foram consertados e cerca de 150 disjuntores substituídos. O retorno da operação, em 7 de junho, ocorreu com as chegadas e partidas concentradas em 18 boxes do setor de desembarque. Usando 25% da estrutura, a rodoviária retomou 60% das viagens.
A ampliação dos reparos na rede elétrica permitiu o funcionamento 24 horas e a liberação de todos os 72 boxes. Nem todos os destinos estão liberados, mas a reabertura de espaços como a sala de embarque permite maior conforto para quem precisa esperar pela partida.
— Eu estava lá embaixo passando frio e uma funcionária me avisou que aqui era mais quentinho. Agora estou bem acomodada — diz a aposentada Nair de Mattos, aproveitando o ar-condicionado enquanto aguardava na quinta-feira um ônibus para Passo Fundo.
Um dia antes, o operário José do Carmo Alves não teve a mesma sorte. Acomodado em um banco sem encosto ao lado da esposa Eliane, ele se preparava para seguir viagem a São Paulo enfrentando o vento gélido que percorria os corredores do terminal. Para Alves, porém, o maior problema é a escassez de opções gastronômicas.
— Comi um churrasquinho e a Eliane, um pastel, mas o que eu queria era feijão e arroz — comenta o trabalhador.
Como todas as lancherias da estação ainda estão fechadas e sem previsão de retorno, ambulantes fixaram ponto na calçada diante dos guichês de passagens. Lado a lado, oferecem café, refrigerante e água, além de doces e salgados. Após ficar 12 dias ilhado e mais de um mês fora de casa por causa da enchente, José Carlos da Silva fixou ponto ao lado da entrada do terminal. Vendendo mais de cem pastéis por dia, já fatura mais do que quando perambulava pelo Centro oferecendo meias, camisetas e bonés.
— A dificuldade cria oportunidade. O povo viaja e precisa de algo para comer. Acordo às 4h e só saio daqui quando anoitece — afirma José Carlos.
Comerciantes começam limpeza de lojas e restaurantes
Quem desce a rampa e cruza o corredor central da rodoviária de Porto Alegre estranha o ambiente repleto de gradis e telas plásticas diante da sucessão de restaurantes e lancherias. Ainda sem energia elétrica nas 200 lojas do terminal, os 64 permissionários começam a preparar a reabertura dos estabelecimentos. Não há previsão de retomada e alguns projetam o reinício das atividades somente em setembro.
Há 50 anos operando na estação, a Q-Pastel foi completamente destruída pela inundação. De lava-jato em punho, um funcionário tentava retirar a lama encruada no mobiliário.
— É uma tristeza. Deu perda total. Vamos ter de comprar tudo novo — diz o gerente Alexandre Soares Silva, que vendia entre cem e 150 pasteis todo dia.
Muitos estabelecimentos seguem com a marca da enchente nas cortinas de ferro. Outros estão com as portas abertas para ventilar. Há um odor pestilento em alguns corredores, fruto da decomposição de material orgânico nas lojas que ainda não foram limpas.
Na Viaggio Bistrô & Café, os funcionários tiravam o barro do piso na última quarta-feira. Móveis e equipamentos revirados pela água mantinham uma camada de gordura na superfície. Segundo a gerente Fernanda Silveira, a loja, que faturava até R$ 10 mil nos dias de boa movimentação, só deve reabrir em setembro.
— Foi desanimador ver como tudo foi estragado, mas agora vamos trabalhar para recomeçar — motiva-se Fernanda.
Responsável pela gestão dos espaços comerciais, o Daer informa que aumentou a procura pelas lojas de melhor localização, sobretudo diante do setor de desembarque. Atualmente, porém, quase 60% da estrutura comercial da Rodoviária está ociosa, já que não há interesse pelos imóveis do segundo piso.
Diminuição de número de passageiros motiva discussão de novo modelo de operação
Quando Vespasiano Júlio Veppo abriu a primeira rodoviária do país, em 1939, em Vacaria, queria evitar um desperdício. Detrás do balcão do café da família, via os ônibus que deixavam a cidade gastar tempo e combustível ao pegar cada passageiro na porta de casa. Oitenta e cinco anos depois, seus herdeiros estudam reverter a queda na movimentação do terminal de Porto Alegre adotando um modelo similar ao corrigido pelo patriarca.
Visionário, Vespasiano criou um negócio que alcançou seu auge em 1989, com 7,29 milhões de bilhetes vendidos na rodoviária da Capital. À época, o terminal emitia o mesmo número de notas fiscais que a CEEE, concessionária de energia de todo o território gaúcho.
No ano passado, foram 2,87 milhões — o menor desde a série histórica começada em 1974, à exceção do período de pandemia. O fenômeno se repete em todo o Estado. O sistema que transportava 33 milhões de passageiros em 2019 deve fechar 2024, mantida a média atual, com 11 milhões de bilhetes — mesmo volume de 2020, auge da pandemia.
— O celular, a internet, o carro popular. Muitas coisas causaram essa redução, até mesmo o desenvolvimento na saúde nas cidades menores. As pessoas também adquiriram novos hábitos após a pandemia — explica Rosário Veppo, neto de Vespasiano e diretor da Rodoviária de Porto Alegre.
Para tentar frear a evasão de passageiros, os sócios estudam alternativas, como descentralização das partidas a partir de terminais menores nas zonas sul e norte da cidade, maior liberdade nos desembarques e instalação de postos de vendas em complexos hospitalares. O objetivo é permitir que o viajante não seja obrigado a ir até a rodoviária para embarcar, e possa ser deixado na esquina de casa, por exemplo, como ocorre nos táxis-lotação da Capital.
— Por que uma pessoa que mora no extremo norte de Porto Alegre precisa vir até o Centro pegar um ônibus que depois vai passar perto de sua casa? — questiona Lauro Hagemann, ex-diretor do Daer e consultor de empresas do setor.
Nos últimos 10 anos, o RS perdeu metade das rodoviárias, que diminuíram de 320 para 162. Além de buscar inspiração em outros modelo de transporte, como os aplicativos de carona, a Veppo se prepara para lançar um sistema de inteligência artificial na venda de bilhetes.
— Nossa missão é racionalizar e atualizar. Antes a gente preenchia 23 itens à mão na venda de cada passagem. Fomos pioneiros no país na emissão por computador e pela internet. Estou emocionado com as possibilidades que a inteligência artificial nos oferece — afirma Rosário.
A rodoviária
- 23,5 mil metros quadrados de área construída
- 200 lojas e 64 permissionários
- 72 plataformas de embarque e desembarque
- Intermunicipais: 43 para embarques e 18 para desembarques
- Interestadual/internacional: 11 para embarque e desembarque
Viagens intermunicipais
- Operação normal: 138 linhas e 250 horários
- Operação atual: 85 linhas e 306 horários
Viagens metropolitanas
- Operação normal: 12 linhas e 43 horários
- Operação atual: 12 linhas e 64 horários:
*ANTT não informou os números da operação interestadual
Número de passageiros na Rodoviária de Porto Alegre
- 2019 - 4,65 milhões
- 2020 - 2,09 milhões
- 2021 - 2,15 milhões
- 2022 - 2,82 milhões
- 2023 - 2,87 milhões
- 2024 - 988 mil*
- * até 30 de maio
Número de passageiros em viagens de ônibus no RS
- 2019 - 33 milhões
- 2020 - 11 milhões
- 2021 - 23 milhões
- 2022 - 18,3 milhões
- 2023 - 16,8 milhões
- 2024 - 5,6 milhões*
- * até 2 de julho