Passados dois meses da enchente histórica que colocou em xeque os planos de empreendedores do Rio Grande do Sul, o 4º Distrito vê a retomada dos primeiros negócios cervejeiros. Com estratégias como venda antecipada de produtos, eventos externos e campanhas de solidariedade, empresas do setor dão os primeiros passos para a normalidade.
Localizado entre o Centro Histórico e o aeroporto Salgado Filho, o 4º Distrito é considerado o maior polo cervejeiro artesanal da Capital. São pelo menos 18 empresas do tipo nesta região da cidade, segundo registro mantido pela Associação Gaúcha de Microcervejarias (AGM), com base no Anuário da Cerveja 2024, elaborado pelo Ministério da Agricultura e da Pecuária (Mapa).
Ao longo desta semana, a reportagem de Zero Hora circulou pelos bairros Floresta, Farrapos, Humaitá, Navegantes e São Geraldo, que integram essa região boêmia da cidade, e conversou com empresas do segmento para entender como está acontecendo essa reabertura.
Solidariedade e criatividade impulsionam retomada
Um dos quatro empreendimentos cervejeiros sediados no 4º Distrito que já retomaram as atividades é a cervejaria Alcapone, conforme informado pela AGM. O negócio, no bairro Navegantes, ficou 20 dias inundado e sofreu perdas de cerca de R$ 1 milhão. Os danos vão desde equipamentos até matéria-prima.
Antes que fosse possível retomar a produção na fábrica, há cerca de uma semana, foi a solidariedade que proporcionou uma esperança para o recomeço. Enquanto o negócio estava inundado, cervejarias de diferentes partes do Estado ofereceram seus espaços para que a Alcapone pudesse seguir produzindo e, com isso, angariar verbas para a reconstrução. Um desses espaços foi a cervejaria Salva, que fica em Bom Retiro do Sul, no Vale do Taquari.
— Destinamos alguns dos tanques da empresa para que outras cervejarias pudessem fabricar aqui. Não cobramos nada para dar um auxílio para que o pessoal pudesse retomar as suas atividades. É um ecossistema. A gente precisa das cervejarias trabalhando, unidas, para o bem do setor — conta João Luís Giovanella, sócio da Salva.
Vendas, eventos e produção descentralizados movimentam a cena
A área do 4º Distrito foi uma das mais afetadas pela enchente de maio. Cláudio de Moraes, 38 anos, sócio da Delta Brew Co., diz que, frente aos estragos deixados, foi necessário diligência e criatividade para manter o negócio rodando na região. A fábrica ficou 1m50cm abaixo d'água e só voltou a produzir bebidas há três semanas, quando foi possível concluir o processo de limpeza. Enquanto isso, fez receita a partir da venda de produtos que ainda estavam no estoque, em locais de terceiros.
— A gente atende mais de cem bares em Porto Alegre. Os bares fora da região do 4º Distrito estão com um volume legal de vendas. É o que está nos segurando — explica Moraes, que enfrentou perdas de quase R$ 500 mil durante o episódio meteorológico.
No bairro São Geraldo, a unidade da 4 Beer reabriu o bar anexo à fábrica há uma semana. Os prejuízos na estrutura somam cerca de R$ 600 mil e ainda estão sendo reparados. Mesmo com a fábrica temporariamente inutilizada, Rafael Diefenthaler, 43 anos, conta que eles já estão produzindo bebidas há cerca de um mês. A produção, que está centralizada em Novo Hamburgo, é o que está permitindo o reinício.
Em uma viagem de dois minutos de carro, é possível chegar na cervejaria cigana KNY saindo da 4 Beer. O estabelecimento funciona há oito anos no bairro São Geraldo. Assim como a vizinha, a água do Guaíba atingiu quase dois metros dentro da empresa, impossibilitando temporariamente o funcionamento. Para contornar a situação, a KNY usou a agenda de contatos para promover eventos em diferentes partes da Capital enquanto esperava a água baixar.
— Foi um sucesso total. Foi bom para ambos, pois nossos clientes conheceram um lugar novo e nós conseguimos um valor importante pra manter os gastos básicos, como a folha de pagamento — afirma Alessandro Kny, 50 anos, que teve cerca de R$ 250 mil em prejuízos na sede administrativa da cervejaria, local que abriga também um bar temático.
— Normalmente a casa já lota, mas naquela quinta-feira foi excepcional. Foi o dia de maior faturamento que tivemos até aquela data — conta Helena Legunes, sócia do Terreiro Bar, que recebeu um dos cinco eventos realizados pela KNY.
A reabertura do bar onde fica a KNY está prevista para acontecer no próximo dia 12, com uma noite regada por drinks, cervejas e chopes, e embalada por música pop rock. No dia seguinte, 13 de julho, a programação prevê uma festa julina, que promete fechar a rua e aquecer a região, que foi severamente castigada pela invasão do Guaíba. Em um primeiro momento, a atuação será reduzida a menos dias da semana.
Campanhas focam reestruturação
Como os processos de limpeza e reparos são demorados, assim como de fabricação de bebidas, que levam ao menos 20 dias para ficarem prontas, os empresários precisaram pensar formas alternativas de monetizar o empreendimento. A Alcapone, a KNY e a 4 Beer promoveram vendas antecipadas de produtos e de créditos para consumo futuro para fazer o negócio girar enquanto não era possível a reabertura.
— O recomeço é gradual, mas gratificante. Estamos retomando aos poucos, da forma que dá. Desde que a água baixou, não tem um dia que eu não venha aqui e trabalhe incansavelmente para a abertura. Isso é a nossa vida. Nós escolhemos o 4º Distrito para sediar os nossos sonhos. Não vamos desistir dessa região. Precisamos que o público, assim como nós, aposte nesta área. Volte a consumir e frequentar — diz Alessandro Kny.
Segundo Filipe Bortolini, presidente da AGM, a expectativa é de que a maioria dos empreendimentos cervejeiros do 4º Distrito retome suas atividades na região. Até o momento, apenas uma cervejaria informou a entidade que deixará a localidade. O presidente da AGM projeta que o grande "boom" destes negócios aconteça com a Oktoberfest deste ano.
Bar volta no sábado
No bairro Floresta, o bar Cortex aguarda este sábado (6) para o tão esperado retorno. Foram quase dois meses para a água baixar e os principais reparos acontecerem. Com a casa impossibilitada de receber eventos, eles contaram a solidariedade de diferentes espaços dentro e fora do Estado para realizar festas e angariar dinheiro para as reformas.
Assim com a maioria dos estabelecimentos do 4º Distrito que voltaram à atividade, o retorno do bar será adaptado, com capacidade menor de público. Parte do prédio seguirá passando por reformas, o que significa que a arrecadação será menor nos próximos meses. Segundo Rafael Schutz, sócio do bar Cortex, os prejuízos até o momento somam R$ 100 mil, sem contar a perda na venda de ingressos durante o período em que a casa ficou fechada.
Para tentar estimular a economia da região, eles planejam uma festa inspirada nos anos 2000 para animar o 4º Distrito na retomada no sábado. Segundo Schutz, uma mensagem escrita "somos fortes" estará estampada na entrada do bar depois das reformas.
A fórmula do recomeço
Empresários abordados pela reportagem elencam fatores que impulsionaram a reabertura dos negócios:
- Agenda de contatos para divulgação ou parcerias
- Rede de solidariedade para solicitar apoios variados
- Venda de estoques em lojas de terceiros
- Venda de créditos ou de produtos antecipados para manter o negócio girando
- Eventos descentralizados e externos enquanto não é possível acessar o local
- Produção em fábricas parceiras enquanto o próprio parque fabril não puder ser utilizado
- Abertura, mesmo com público ou produção reduzida, para manter a entrada de verbas
- Criatividade, adaptação e resiliência para pensar soluções rápidas e de baixo custo.