Com a embreagem falhando, Sérgio Braga conduzia lentamente a van rampa acima, cuidando para não derramar os primeiros 300 litros de diesel que manteriam ativo o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul (TJ) em meio ao cataclismo de maio.
Eram 7h da noite de segunda-feira, dia 6, e enquanto o motorista levava combustível para alimentar um gerador no sétimo andar de um prédio às escuras e cercado de água, um grupo de analistas subia para a nuvem 200 terabytes de informações judiciais, protegendo de qualquer intercorrência os 10.380.446 processos que tramitam no Judiciário gaúcho. Numa operação que varou madrugadas caóticas, os servidores concluíram em 11 dias a migração do sistema, fazendo do TJ o único órgão do ambiente de Justiça que permaneceu no ar durante o aluvião que varreu o Estado.
A transferência do sistema de processo eletrônico, o eproc, dos data centers do TJ para a nuvem estava programada para ocorrer no final do ano. A ideia era usar o recesso do Judiciário para fazer uma transição gradual, sem pressa. O planejamento acabou atropelado depois que o chefe do Departamento de Infraestrutura do tribunal, Giovani Lino, entrou na sala da diretora de Tecnologia da Informação, Vanessa Pires, no final da tarde de quinta-feira, dia 2.
Vanessa, estão dizendo que a água vai chegar a cinco metros. Vai alagar tudo de novo
GIOVANI LINO
Chefe do Departamento de Infraestrutura do TJ
— Vanessa, estão dizendo que a água vai chegar a cinco metros. Vai alagar tudo de novo — avisou Lino.
De imediato os dois lembraram do alagamento ocorrido em 2015 no entorno do TJ, quando percalços licitatórios posteriores tornaram o data center do prédio inacessível por um ano e meio. Para evitar problema semelhante, subiram ao 12º andar, entrando sem bater no gabinete do presidente Alberto Delgado Neto. Àquela altura, já havia comarcas alagadas pelo Interior e a água se insinuava em várias regiões de Porto Alegre, superando os três metros da cota de inundação do Cais Mauá.
Numa rápida reunião, eles decidiram se precaver marcando para a manhã seguinte a transferência virtual da hospedagem do eproc dos servidores do Tribunal para os do Foro Central II, guarnecidos numa sala-cofre maior e mais robusta no imponente edifício de 23 andares do começo da Avenida Ipiranga. Vanessa encerrou o expediente e buscou o filho no colégio, mas não parava de pensar na possibilidade de a água subir rápido demais. De casa, convocou seis colegas e decidiu levar a operação a cabo naquela mesma noite. Por volta das 22h, quando encerraram a migração, o Guaíba alcançava 3m50cm e começava a avançar sobre Porto Alegre.
No dia seguinte, o entorno do tribunal amanheceu alagado. Com a cidade em estado de calamidade pública, a alta administração do Judiciário se reuniu no Palácio da Justiça, na Praça da Matriz, e suspendeu o trabalho presencial e os prazos processuais. A noite chegou com bairros inteiros sendo evacuados, na maior enchente da história de Porto Alegre.
No sábado, rumores de que a CEEE Equatorial desligaria a energia no bairro Praia de Belas, tirando do ar os data centers do TJ e do Foro II, manteve o Judiciário em assembleia permanente. Para evitar riscos de um desligamento abrupto, o que depois retardaria a ativação dos sistemas, Vanessa decidiu desativar as duas salas-cofre, a exemplo do que estavam fazendo o Ministério Público e os Tribunais Regionais, Federal e do Trabalho.
Todavia, a CEEE não desligou a rede. À noite, o diretor-geral do TJ, Alberto Araguaci, foi informado pela companhia de que a região seria a última a ser desenergizada. Diante do quadro de incerteza e da necessidade de se manter o Judiciário atuando durante o desastre climático, Vanessa reativou o data center do Foro II.
Na manhã de segunda-feira, o prédio do TJ colapsou, com a água alcançando 12 metros, alagando dos três pavimentos do subsolo à beira do segundo andar superior. À tarde, a energia foi desligada. Sem arquitetura computacional suficiente para manter o eproc rodando apenas no data center do Foro II, a gestão autorizou a transferência total do sistema para a nuvem.
— Todos os órgãos do sistema de Justiça tinham tirado do ar suas plataformas de processo eletrônico, mas nós não podíamos ficar inoperantes. A nuvem era a garantia de que poderíamos trabalhar com segurança cibernética — diz o desembargador Antonio Vinicius Amaro da Silveira, presidente do Conselho de Inovação e Tecnologia do TJ.
Com os bairros Cidade Baixa, Menino Deus e Praia de Belas sendo evacuados às pressas, uma força-tarefa do Judiciário rumava em sentido contrário. Houve baixas no caminho. O principal coordenador de Giovani na Diretoria Infraestrutura perdeu a casa em Canoas e o número dois de Vanessa na TI perdeu o pai em Catuípe. Servidores choravam ao telefone e outros desligavam na cara dos chefes.
Como não se sabia até quando haveria energia elétrica e já se falava em desabastecimento de combustível, era preciso conseguir com urgência diesel para manter os geradores. Enquanto especialistas em computação dividiam em cinco blocos a migração de 200 trilhões de bytes para a nuvem, um funcionário entrava a nado em uma loja de bombonas e Sérgio Braga percorria os postos ainda abertos.
Então fomos colocando 50 litros por hora, torcendo para não parar
JURANDIR FORTES
Núcleo de Inteligência do TJ
Havia ainda outro obstáculo: nenhum servidor sabia manusear o gerador instalado num canto estreito do estacionamento do Foro II e os técnicos encarregados da manutenção estavam ilhados em casa. Quando Sérgio terminou de subir a primeira carga de combustível, foi preciso transferir o diesel das bombonas para galões menores, de 50 litros, e dali para o gerador, sempre chupando o óleo com a boca direto numa mangueira.
— Só que a gente não sabia quanto diesel já tinha no gerador, qual era a autonomia e o consumo, então fomos colocando 50 litros por hora, torcendo para não parar — conta o tenente Jurandir Fortes, membro do Núcleo de Inteligência do TJ.
A operação seguiu madrugada adentro, até que por volta das 4h30min um eletricista de Alvorada apareceu para socorrer o grupo, após o assessor da presidência Ivandre Medeiros fazer um apelo emocionado dizendo que precisava sustentar o único sistema de Justiça do Rio Grande do Sul. O dia amanheceu com o grupo sabendo que o gerador consumia 33 litros por hora e onde visualizar o nível do tanque. Mas do lado de fora do prédio a água subia rapidamente, ameaçando o transporte do combustível até o sétimo andar.
Por cinco dias e quatro noites, os servidores se revezaram para abastecer o gerador com 4.119,46 litros de diesel, divididos em equipes de 12 pessoas por turno. Cobertas, marmitas e suprimentos eram levados de barco, caminhão e Jeep para o grupo de suporte, ao tempo em que 35 servidores da TI e 46 funcionários de empresas parceiras subiam os 10 milhões de processos.
A energia foi religada pela CEEE na sexta-feira (10), mas a migração dos dados ainda enfrentava obstáculos, como o aprisionamento digital de milhões de vídeos e documentos em um servidor Hitachi que não interagia com outras tecnologias. Com uso de um software aprimorado especialmente para o serviço, a retirada dessas informações, prevista para demorar um mês e meio, foi feita em oito dias. Em 17 de maio, a transferência total do eproc foi concluída.
Os técnicos usaram a semana seguinte para fazer testes e ajustes até que, às 8h do dia 27, o analista Felipe Rout digitou em uma tela preta o comando aws ec2 start-instances eproc1g-prd.sh, migrando definitivamente o sistema do data center para a nuvem. No instante seguinte surgiram as primeiras demandas, com um processo de ameaça em Rodeio Bonito e um pedido de indenização em São Leopoldo.
Ajudar as pessoas da forma que a gente pode, e a forma que a gente pode é levando a melhor justiça, porque elas vão precisar
VANESSA PIRES
Diretora de Tecnologia da Informação do TJ
A sede do Tribunal de Justiça segue fechada, bem como os prédios do Foro Central I e II - os dois primeiros só terão acesso ao público em agosto. Mas no Estado mais litigante do país, com média de 14 mil processos para cada 100 mil habitantes, o judiciário não sucumbiu à força das águas, recebendo 2 mil petições por dia no período crítico da enchente.
— Era muito arriscado fazer a migração naquelas condições, mas eu disse à equipe que a gente tinha um propósito: ajudar as pessoas da forma que a gente pode, e a forma que a gente pode é levando a melhor justiça, porque elas vão precisar — conta Vanessa, lamentando apenas não ter limpado a cuia ao deixar a sala no TJ na distante tarde de 2 de maio.
— O mate na volta vai ser impraticável — completa.