As paredes grossas da casa do número 430 da Avenida Presidente Franklin Roosevelt, na zona norte de Porto Alegre, eram brancas. Agora, estão bicolores: enquanto a lama pintou o primeiro quarto de altura de marrom, o mofo se encarregou de escurecer os outros três. Apesar da trégua da chuva dos últimos dias, gotas d’água seguem reluzindo do teto.
O cenário, excepcional para quase todos os imóveis da cidade, não é inédito para aquelas paredes e tetos, e nem mesmo para aquela família: assim como há 83 anos, os Huff terão de migrar para outro ponto da Capital para, de novo, começar do zero.
Localizada no bairro Navegantes, a casa da família Huff era recente em 1941, quando a primeira enchente aconteceu. O local havia sido construído pelo avô de Gislaine, 66 anos, e era alugada quando a inundação veio. A família Huff vivia a pouco mais de um quilômetro dos inquilinos, na Rua Beirute, que também foi atingida pela água.
— A minha mãe tinha 10 anos e eles foram para o sótão de uma tia. Ela contava que o tio tinha um armazém e levou todas as sacas de batata, arroz e feijão para esse sótão com eles. Conforme a água subia, as crianças mediam o nível com palitinhos de fósforo, degrau por degrau — lembra Gislaine.
Pelas ruas, a menina via pessoas boiando na água, carregando malas e baús. Ao neto Alexandre, 35 anos, a avó relatou que, quando o barqueiro chegou para fazer o resgate das mulheres e crianças da casa, o bisavô de Alexandre e avô de Gislaine determinou: ou saía todo mundo ou não saía ninguém.
— Ele não deixou ninguém sair e, depois, voltaram com outro barco para resgatar todos — conta Alexandre.
Os inquilinos perderam toda a mobília para a água, assim como os proprietários, no imóvel da Rua Beirute. Por alguns anos, a família Huff precisou morar em outro local, no Centro Histórico de Porto Alegre, próximo à Usina do Gasômetro, mas a vontade era de regressar para o bairro Navegantes, onde tinham propriedades e vínculos afetivos, para criar os filhos.
Quando Gislaine nasceu, ficou decidido: todos morariam na casa da Franklin Roosevelt.
— Aos dois meses de vida, eu vim morar aqui. Hoje estou com 66 anos e, desde então, sempre morei aqui. Agora, vou ter que sair. Não tem mais condições (estruturais), e a gente fica insegura, né? Agora, qualquer chuvinha que der, a gente vai ficar em pânico — lamenta ela.
Construída a cerca de 60 centímetros de altura da rua, desde 1941 a casa nunca mais tinha sofrido com inundação – nas piores chuvas, a água sequer chegava até a calçada. Por isso, quando a enchente de 2024 começou, a família colocou algumas cadeiras em cima da mesa, procurou deixar os colchões mais altos e pensou que seria o suficiente.
— No dia 1º de maio, quarta-feira, a gente ia fazer uma reunião de família aqui, que a gente faz geralmente, e começou a chover. Aí, cancelamos. Na quinta, dia 2, viemos ajudar a levantar as coisas e tirar a tia de casa, já dizendo: segunda-feira tu já tá de volta — recorda Alexandre.
Ao regressar para conferir os estragos, a família encontrou um cenário desanimador: praticamente nada poderia ser reaproveitado. A casa, que atualmente serve tanto de moradia como de trabalho para Gislaine e o marido, Paulo Vontobel, que têm uma venda de cartuchos para impressora, precisa passar por uma série de faxinas pesadas e pela troca do tabuão por um piso de alvenaria, para, aí sim, se pensar no que fazer.
— Meu marido está querendo abrir a parede lá da frente e alugar para comércio, mas ainda vamos ter que esperar um tempo, porque vamos ter que restaurar tudo e ver quem vai ficar no bairro, né? Estou achando que o pessoal vai debandar. Tudo sendo revitalizado, um monte de bares e casas noturnas, e acabou tudo — reflete Gislaine.
A família criou um financiamento coletivo para ajudar na reconstrução da casa, que pode ser acessado neste link.
O temor é de que a saída do comércio da região torne o bairro mais inseguro. Outra preocupação é com a mudança dos vizinhos: hoje, Gislaine caminha pela rua e conhece todo mundo, algo que, pelo que percebe, deixará de acontecer.