A maior cheia da história de Porto Alegre e do Rio Grande do Sul traz uma série de questionamentos e dúvidas. Procurar descobrir o que contribuiu para a situação chegar até ao patamar de catástrofe será um exercício gradual de investigação. O assoreamento (acúmulo de sedimentos que afetam cursos d'água) de rios, riachos e arroios pode ter colaborado para a inundação?
A reportagem de Zero Hora entrevistou pesquisadores sobre tal possibilidade. Todos foram unânimes em dizer que não. Porém, os especialistas reconhecem e explicam a importância do serviço de desassoreamento, especialmente nos canais de água urbanos.
O professor do Instituto de Pesquisas Hidráulicas (IPH) Fernando Dornelles, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), não atribui o problema da enchente em Porto Alegre ao assoreamento no Arroio Dilúvio ou em trechos do próprio Guaíba.
— O (serviço de) desassoreamento do Dilúvio não impacta na cheia. Ele é necessário para aquelas chuvas intensas que acontecem na bacia dele — afirma.
Doutor em Recursos Hídricos e Saneamento Ambiental, Dornelles pontua que os já executados no Guaíba e no Rio Jacuí ocorrem com um objetivo específico.
— O desassoreamento deles acontece por necessidade de navegação, para ter calado para os navios passarem. Ali tem manutenção periódica — esclarece.
Conforme o pesquisador, o Dilúvio está alto em função do efeito de “remanso” do Guaíba. A água está sendo remansada para dentro dos cursos d’água.
Desassoreamentos periódicos
O Rio Gravataí também passa por processo semelhante até a ponte existente na RS-118, onde a água pode ser vista parada. O mesmo se verifica com o Rio dos Sinos até quase o fim da BR-448. Entretanto, o docente ressalta a importância de haver desassoreamentos periódicos, especialmente nos arroios urbanos, que estão sujeitos a acúmulos de mais sedimentos. Ele compara a situação entre o Dilúvio e o Arroio do Salso.
— Por que não temos necessidade grande de desassoreamento do Arroio do Salso? Porque ainda há muita área rural e largura. O Dilúvio tem uma bacia muito mais urbanizada e área urbana maior. Então, nestes mais urbanizados, a produção de sedimentos, assim como o lixo da própria população, são maiores — explica, dizendo que as dragagens precisam ser ações permanentes.
O diretor do Instituto do Meio Ambiente da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), Nelson Fontoura, possui opinião parecida. Em sua avaliação, a cheia não tem relação com assoreamento ou até com atrasos na realização do serviço de remoção de sedimentos.
— O problema está relacionado a um volume muito grande de chuvas. Se tivéssemos uma política ambiental mais efetiva do ponto de vista de proteção de encostas e vegetação ciliar, o problema seria um pouco menor — analisa o diretor.
Segundo ele, o acúmulo de sedimentos faz parte do processo natural dos corpos d’água. O professor inclusive menciona que o serviço de dragagem vinha sendo realizado recentemente na foz do Dilúvio junto ao Guaíba.
— Não houve contribuição do Dilúvio em si para a inundação da cidade. Toda a água que chegou nele acabou no Guaíba sem extravasamento — salienta.
A professora Luciana Paulo Gomes, do Programa de Pós-Graduação (PPG) em Engenharia Civil da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos) e líder do grupo de pesquisa de saneamento ambiental da instituição, diz que o assoreamento no fundo dos canais ou rios não tem culpa pela enchente.
— O assoreamento não é o principal problema. Mas fazer o desassoreamento é uma forma de a água escorrer para fora da cidade. Todo o sistema de drenagem da cidade está dimensionado para uma época diferente. Cobrimos praticamente toda a cidade de concreto.
Alternativa para o Dilúvio
O diretor sugere a alteração do leito do Dilúvio como uma alternativa para se evitar o acúmulo de resíduos ao longo de seu curso.
— O ideal seria uma calha concretada em forma de parábola que tivesse uma caída mais contínua, que possibilitasse uma velocidade de corrente para empurrar os sedimentos — ilustra.
Falta de manutenção em obras
Ele cita outros dois fatores preocupantes neste cenário de inundação na Capital.
— As obras de proteção contra as enchentes teriam que ter manutenção. E temos uma condescendência com as ocupações humanas em áreas de risco. As pessoas precisam ser removidas e indenizadas para que a enchente seja apenas um problema ambiental, e não humano — reflete.
Prefeitura fala em redução do nível de vazão
A prefeitura de Porto Alegre, por meio do Departamento Municipal de Água e Esgotos (Dmae), argumenta que 85% da vazão de água do Guaíba vem do Rio Jacuí.
— A remoção de sedimentos dos arroios e canais da cidade tem pouca influência em um evento desse tamanho — assegura o diretor-adjunto do Dmae, Darcy Nunes.
Segundo Nunes, o Guaíba não passa por extração de areia desde 1988. De acordo com ele, este fato associado aos sedimentos trazidos pelo Jacuí, podem influenciar em uma outra situação.
— Não tenho dados, mas acredito que o Guaíba tem processo de redução de nível em razão do acúmulo de sedimentos em seu fundo desde essa época. Isso poderia ajudar em uma alteração do nível. Mas dizer que isso influenciou não consigo afirmar.
Saiba mais
No final de março de 2022, a dragagem foi retomada no Arroio Dilúvio. O serviço se estendeu para os arroios Cascata, Mato Grande, Moinho, Taquara e Mem de Sá, além de reservatórios para armazenamento temporário das águas das chuvas.
Antes desse recomeço, as últimas ações de desassoreamento do Dilúvio ocorreram entre 2018 e 2019. Foram três anos sem essa manutenção.
Atualmente, o serviço vinha sendo desenvolvido na foz do Dilúvio junto ao Guaíba. O trabalho precisou ser interrompido quando as chuvas se intensificaram e começou a enchente na Capital.