O calçadão do Lami, onde as pessoas tradicionalmente faziam as suas caminhadas e andavam de bicicleta, agora só pode ser acessado por barco. Não dá mais pé. A água, no local, quase chega aos dois metros. E com toda essa altura, a enchente avançou pelas casas que costeiam a orla, que ficaram destruídas pela força da natureza. Por ali, a visão é de muros caídos, paredes cedendo e muitos galhos flutuando. O verde que era predominante, agora, é marrom.
Uma dessas residências que foram tomadas pela enchente é a de Lauri Goettems, o Nene do Lami, 44 anos, pescador conhecido da região. Ele mora bem na Avenida Beira-Rio, que faz divisa da orla com a comunidade. E, com o avanço da chuva sobre a sua casa, perdeu quase todos os seus bens materiais, mas isso não afetou em nada o seu senso de comunidade. Após deixar a esposa e o filho em um local seguro, longe do Guaíba, voltou para auxiliar os seus vizinhos.
— Quando começou a enxurrada, no domingo passado, nós começamos a ajudar o pessoal, mas as minhas coisas eu deixei para trás. Ajudei todo mundo e fomos tirar as minhas coisas por último, aí perdi o que eu tinha, quebrou tudo. Salvamos primeiro as pessoas — conta o pescador, que se emociona ao recordar os últimos dias.
E foi o Nene do Lami, morador da área há 15 anos, quem se prontificou, nesta sexta-feira (10), a levar a reportagem para navegar pela cidade que agora se confunde com o Guaíba, para mostrar a destruição trazida pela enchente. A água tomou frente em, pelo menos, cem metros, na direção às casas. E o guia teme que, com as novas chuvas e uma mudança no vento, o cenário ainda piore.
— A água vai subir de novo, mas eu vou ficar aqui até o final, até a água baixar. Isso vai ter que acabar — diz seu Nene, que perdeu as contas de quantas pessoas e animais resgatou nos últimos dias.
O pescador adentra a enchente com o apoio de seu ajudante, Erick Lopes, que tornou-se essencial para a tarefa, uma vez que o carburador da embarcação pifou, o que dificulta a navegação. É ele quem precisa puxar a barca, apelidado de “Sucuri do Lami”, por ser de cor de cobra, ou mudar a rota dentro d'água usando uma taquara. E, tal qual o seu orientador, o jovem também viu a água tomar a sua casa — bem como a da sua mãe, que precisou deixar a região.
— Eu nunca tinha visto nada assim, nunca foi assim. Mas vou ficar junto até o final — diz o aprendiz de pescador, que entra na água sem pensar duas vezes para fazer a sua tarefa heroica.
Sem pedir um centavo para resgatar as pessoas ilhadas, tirar móveis ou, até mesmo, levar mantimentos para quem está isolado, Nene e Erick só pedem ajuda com gasolina para poderem seguir atuando. E é doação, não exigência. A qualquer momento, ele está pronto para adentrar nas águas, parado na Estrada Otaviano José Pinto, a poucos metros do Bar do Gerald.
Ponto de acolhimento
O estabelecimento fica na entrada principal da Praia do Lami e é o único ponto com pessoas no local que, geralmente, é movimentado, com música e alegria. O espaço, agora, virou um ponto de acolhimento, de coleta de doações e de distribuição. Por ali, cinco vizinhas, que moram uma quadra adentro em direção ao Guaíba, estão acampadas debaixo do telhado, com uma barraca em que elas se revezam para dormir.
As cinco ficam ali, guardando as suas casas que, apesar de alagadas, ainda contam com as suas conquistas materiais — mesmo que parte delas já tenham sido saqueadas, conforme relatos das amigas.
Eu moro há 30 anos aqui, peguei três enchentes, mas como essa aqui, nunca tinha acontecido
MARIA HELENA SILVEIRA CARVALHO
Moradora do Lami
— A gente tem que cuidar, os furtos estão grandes por aqui. Eu ainda consegui salvar a geladeira, mas o resto ficou. E, por mais que as coisas estejam molhadas, eles levam, na maior cara de pau — conta Adelita Maria Ramgrab, 57 anos.
Foi o caso de Maria Helena Silveira Carvalho, 68 anos, do lar, que teve o seu micro-ondas levado por assaltantes, mesmo com a sua casa estando debaixo d’água. Ela, que vive a uma quadra da orla do Lami, nunca tinha visto algo assim, seja a fúria da natureza ou a falta de empatia do próprio ser humano.
— A água está até o teto na minha casa. Não consegui tirar nada de dentro de casa, só os documentos. A gente não sabia que ia dar essa proporção toda. Eu moro há 30 anos aqui, peguei três enchentes, mas como essa aqui, nunca tinha acontecido — explica Maria Helena. — E, agora, já levaram tudo da minha casa. Mas eu só fico aqui porque não tenho onde ficar.