A curva da Rua Pedro Boticário que leva para a Rua Dom João VI, no Bairro Medianeira, zona leste de Porto Alegre, faz esquina com a década de 1940. As casas com o número ímpar, entre o 273 e o 151, em direção à Avenida Oscar Pereira, foram construídas pelo Instituto de Previdência do Estado do Rio Grande do Sul (IPE-RS) a partir de 1937 para serem cedidas a servidores municipais e estaduais da época.
Há 86 anos era assinado na prefeitura o projeto para construção das residências “as ruas Figueira e União”, antigos nomes da Dom João VI e da Pedro Boticário, respectivamente. As casas geminadas com dois pisos tinham, no desenho original, versões de dois e três dormitórios, térreo com hall, sala de estar, sala de jantar e copa, além de um pátio nos fundos. As 19 casas resistem, separadas pela Rua Nossa Senhora das Graças, como amostra de um tempo em que o Estado fornecia moradia aos servidores.
— À época, servidores públicos, em nível estadual ou municipal, de qualquer parte do Rio Grande do Sul, podiam se filiar ao IPE e usufruir das vantagens do instituto. As casas eram uma delas, com um certo período de isenção de imposto — explica o arquivista da Gestão Documental da prefeitura de Porto Alegre, Roger Denis de Fraga, após investigar registros das plantas baixas e dos primeiros servidores que foram moradores do local.
História viva
Morador do número 151, a primeira casa para quem vem da Avenida Oscar Pereira, Luiz Carlos Olinto Martins tem 72 anos e é oficial da reserva do Exército. Nascido em São Gabriel, é da terceira geração de militares da família. Depois de anos frequentando a residência como visitante, Luiz comprou a casa dos tios, que as herdaram de Armando Olintho, em 1992. Desde então, vive e cuida da mãe acamada, filha de Armando, um dos primeiros moradores da rua.
— Todo mundo se conhece, entre as casas, mesmo não sendo mais relacionados aos donos originais. As relações no bairro são menos formais. Há uma confiança maior, como poder comprar com caderninho na venda, por exemplo — destaca Martins, debruçado na janela, no fim da manhã do dia 1º de novembro.
Na quadra ao lado, o professor universitário de História da Educação Juarez Diel, 60 anos, mora no número 233 desde os 10 anos. Conta que sua mãe veio de Lajeado nos anos 1950 e fez a vida ali. Desde o hall de entrada é possível perceber o apreço do historiador pela cultura brasileira, o que se reflete na manutenção da arquitetura original do imóvel. As portas e janelas são ainda de madeira, contrastando com o alumínio de alguns vizinhos.
— Tento manter a casa com a cara original, pois é um patrimônio histórico muito rico — defende.
A região sofreu mudanças consideráveis nas oito décadas. O bairro Medianeira é continuação da Azenha, que por sua vez é via direta de acesso e saída para o Centro da Capital. A concentração de serviços financeiros e sede dos poderes municipais levaram desenvolvimento para o entorno da rua com os imóveis tradicionais, explica Roger Fraga.
— O local era considerado distante do centro da Capital. A distância é a mesma, porém a circulação ficou bem mais fácil com o transporte público, melhorias nas vias e popularização dos automóveis. A própria Avenida Professor Oscar Pereira não existia com essa denominação até 1953. Antes disso, inclusive em 1937, era a Estrada de Belém, depois passou a ser a Estrada da Cascata — detalha o arquivista.
Quando o IPE construía
Os registros históricos no IPE mostram que financiamento e aluguel de casa nova eram alguns benefícios que o instituto oferecia aos trabalhadores de órgãos públicos gaúchos que fizessem o requerimento. Segundo arquivos publicados no livro “IPERGS, os primeiros anos 1929-1937”, de 1932 até 1938 foram firmados 102 contratos hipotecários ou prediais em um universo de 14.547 segurados - boa parte deles no IAPI, na zona norte de Porto Alegre.
Os juros destes contratos não eram atrativos, mas chegavam aos 300 meses de tempo possível para quitação. Os benefícios gerais do instituto eram tirados dos servidores em caso, por exemplo, de condenação judicial que manchasse a imagem de “vida honesta”.
Patrimônio protegido
A Secretaria Municipal de Cultura e Economia Criativa (Smcec) explica que os imóveis são inventariados e protegidos por lei desde 28 de dezembro de 2011. Qualquer alteração deve ser autorizada pela prefeitura. A fiscalização é responsabilidade da Secretaria de Meio Ambiente, Urbanismo e Sustentabilidade (Smamus) e da Smcec.