Viagens em família, encontros de negócios, agendas de autoridades e compromissos que dependam de pousos e decolagens no aeroporto Salgado Filho estão, há sete anos, sob permanente risco de atraso. Desde 2016, em razão de uma interdição do Ministério do Trabalho, as operações na pista estão proibidas nos momentos em que há tempestades com raios a uma distância de até três quilômetros.
Na prática, a medida retarda os embarques, mantém passageiros presos nos aviões sem desembarcar e deixa amigos e familiares em compasso de espera no saguão. Em paralelo, provoca cancelamento de voos, alternância de rotas para outros aeroportos e congestionamento de aviões no pátio do Salgado Filho, único lugar do Brasil com essa regra vigente.
A determinação está sendo questionada na Justiça do Trabalho pela Fraport, concessionária que administra o aeroporto, em um processo que não tem prazo para ser julgado. Ao mesmo tempo, Fraport, Ministério do Trabalho e a Agência Nacional de Aviação Civil (Anac) tentam acordo em uma mediação conduzida pela Advocacia-Geral da União.
Os contratempos provocados pela restrição se agravaram neste ano, em razão da frequência das tempestades. Nos oito primeiros meses de 2023, foram 22 episódios de paralisação, totalizando 16 horas e 24 minutos com embarques e desembarques suspensos. Em todo o ano de 2022, houve 14 episódios, que somados, chegaram a 8 horas e 44 minutos, conforme a Fraport.
No caso mais recente, em 23 de agosto, a delegação do Inter teve de esperar mais de uma hora para desembarcar no retorno da Bolívia, após jogar pela Copa Libertadores. No mesmo dia, o governador Eduardo Leite perdeu uma conferência do Banco Santander, em São Paulo. Leite embarcaria pouco depois das 15h, mas como só conseguiu decolar às 18h, foi direto a Brasília, onde tinha outros compromissos.
Quem também teve de enfrentar o atraso foi o professor universitário Marco Antônio Sperb Leite, que tinha voo marcado para São Paulo às 14h35min mas conseguiu embarcar só depois das 20h. Gaúcho radicado em Goiânia, Sperb também é piloto privado, costuma viajar bastante em razão do trabalho e diz que desconhece situação semelhante no país.
— Nunca tinha visto isso. Algumas pessoas ficaram nervosas e começam a dar bronca nas atendentes das companhias, como se elas pudessem resolver alguma coisa — relatou Sperb.
Origem trágica
A interdição do Salgado Filho relacionada aos raios teve origem em 2016, quando um mecânico morreu após ser atropelado pelo trem de pouso de um avião quando buscava abrigo de uma tempestade. O profissional não estaria usando o fone de ouvido indicado para se comunicar com a cabine do avião. O receio se explica porque, se uma descarga elétrica atingisse a aeronave, a carga poderia ser direcionada ao homem que estava no solo.
Ao tomar conhecimento do caso, a Superintendência Regional do Trabalho (SRTE), ligada ao Ministério do Trabalho, expediu o termo de interdição.
Chefe da Seção de Segurança e Saúde do Trabalho da SRTE/RS, o auditor Sérgio Augusto Garcia diz que a Infraero, que administrava o aeroporto de Porto Alegre à época, não solicitou o levantamento da interdição, mas optou por entrar com recurso administrativo em Brasília e, posteriormente, com ação na Justiça do Trabalho. Ao assumir o aeroporto, a Fraport também optou pela via judicial.
— Se o pedido de levantamento da interdição for feito, estamos dispostos a conversar e analisar esse pedido — comenta Garcia.
Conforme o secretário-geral do Sindicato dos Aeroviários de Porto Alegre, Osvaldo Rodrigues, a interdição é importante para "não colocar em risco a vida das pessoas". Segundo ele, a categoria está disposta a iniciar um debate nacional sobre o assunto, para que a mesma regra seja adotada em outros lugares:
—Vamos esperar ocorrer uma fatalidade para que sejam adotadas as mesmas medidas de segurança? Se não tem em outros lugares, talvez tenha faltado uma atuação do Ministério Público e de entidades que representam trabalhadores.
A Fraport informou, por escrito, que entende não existir "embasamento técnico/jurídico para a interdição" e frisa que o caso do Salgado Filho é único, mesmo que o Rio Grande do Sul não tenha "nenhuma situação particular a justificar uma rigidez maior na operação aeroportuária".
Questionada sobre as medidas tomadas para reverter o quadro, a Fraport listou uma série de ações, como instalações de sistemas de proteção contra descargas atmosféricas (SPDAs) e aterramentos, melhorias na iluminação e sinalização horizontal e compra e instalação de estação meteorológica.
O professor James Waterhouse, do departamento de Engenharia Aeronáutica da Universidade de São Paulo (USP), salienta que, durante as tempestades, é preciso evitar a exposição aos raios, mas isso não implica suspender as operações dos aeroportos. Ele sugere, por exemplo, que os funcionários possam trabalhar dentro de automóveis, que têm maior grau de proteção às descargas.
— Para os funcionários que fazem handling (manuseio) de bagagem, ou seja, precisam ficar expostos, pode-se fazer em regiões próximas ao terminal, com cobertura de para raios — sugere o professor, que também recomenda "a adoção de para-raios em todas as áreas possíveis".
Por outro lado, o professor Fernando Lang da Silveira, do Instituto de Física da Ufrgs, afirma que, em casos de tempestades com raios," não há como garantir segurança de pessoas em amplas regiões abertas", como pistas de aeroportos. Lang diz que a regra deveria ser ainda mais restritiva, suspendendo todas as atividades quando há tempestades com distância de até dez quilômetros.
— A interrupção deve ser mantida até 10 minutos após a última descarga elétrica detectada — recomenda.
Determinação é questionada; outros aeroportos costumam avaliar casos específicos
A suspensão das atividades na pista quando há descargas elétricas próximas é adotada em alguns aeroportos ao redor do mundo, como o de Munique, na Alemanha, e de Manila, nas Filipinas, mas não é regra consolidada.
O Guia de Gerenciamento de Riscos de Segurança para Aeroportos do Federal Aviation Administration (FAA), órgão regulador dos Estados Unidos, recomenda o cancelamento de atividades de pista quando houver descargas elétricas num raio de 2 milhas (3,2 km).
No Brasil, o Regulamento Brasileiro de Aviação Civil nº 153, da Anac, orienta que, durante tempestades de raios, devem ser interrompidas "atividades de abastecimento ou transferência de combustível de aeronave ". O documento, entretanto, não menciona o embarque e desembarque de passageiros.
Enquanto a interrupção nas atividades é regra no Salgado Filho, outros aeroportos brasileiros não costumam cessar embarques e desembarques quando tempestades se aproximam. Em geral, as situações são avaliadas caso a caso, a depender da gravidade da intempérie.
No aeroporto do Galeão (RJ), por exemplo, a avaliação é feita pelo centro de operações. A concessionária RIOgaleão informa que se o órgão "avaliar que há riscos para a segurança das pessoas, as operações podem ser interrompidas, até que as condições meteorológicas se normalizem".
Em Guarulhos (SP), a concessionária GRU Airport diz que "adota um procedimento padrão para as situações de intempéries" e emite comunicados a empresas da área operacional para que sigam os procedimentos de segurança.
Questionada sobre como lida com o tema nos aeroportos que administra em outros países, a Fraport ponderou que não há um "catálogo de medidas" a ser adotado nessas situações visto que não é possível definir todas as situações que podem ocorrer, e que a decisão sobre suspender operações "é fruto do consenso entre a equipe do aeroporto e o controle de tráfego".