Em março de 2022, o Grupo de Investigação da RBS (GDI) mostrou que sete creches (para crianças de 0 a três anos) ou escolas pré-infantis (de três a seis anos) de Porto Alegre estão abandonadas. Elas formam hoje um cemitério de prédios tomados por lixo, mato e musgo, todos depredados, pichados e saqueados.
Nada disso mudou em um ano, mas a prefeitura promete agir. Conforme a Secretaria Municipal de Educação (Smed), deve ser retomada neste ano a construção de cinco desses sete estabelecimentos de ensino inacabados.
A verba para recomeço das obras será dos cofres municipais e não mais do governo federal, como na época em que as creches foram projetadas. O valor previsto é de R$ 32,3 milhões, a serem repassados entre 2023 e 2024 (média de R$ 6 milhões por creche). Tudo será supervisionado pela agência das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco), conforme convênio acertado pelo ex-prefeito Nelson Marchezan e confirmado agora pelo atual prefeito, Sebastião Melo.
Essas escolas totalizarão 1.272 novas vagas de educação infantil e deverão ser entregues no segundo semestre de 2024, informa a titular da Smed, secretária Sônia Maria Oliveira da Rosa. A previsão é de que a recuperação tenha início em dezembro e tudo esteja finalizado em um ano.
As sete escolas inacabadas faziam parte do Programa Nacional de Reestruturação e Aquisição de Equipamentos para a Rede Escolar Pública de Educação Infantil (Proinfância), do governo federal. Tiveram as obras abandonadas entre 2013 e 2015, por falta de fluxo de verbas federais ou dificuldades das construtoras, na maioria dos casos.
Cronograma
A secretária Sônia já tinha anunciado a intenção de retomar seis das sete construções, em maio do ano passado. O cronograma foi refeito e, desta vez, o objetivo será mais modesto: serão retomadas cinco obras e não seis.
As que devem ser concluídas são a Clara Nunes (bairro Lageado), Moradas da Hípica (bairro Hípica), Colinas da Baltazar (Rubem Berta), Raul Cauduro (Rubem Berta) e Jardim Leopoldina II (Jardim Leopoldina).
— A parceria com a Unesco foi essencial para dar celeridade ao processo e viabilizar os recursos necessários — celebra Sônia.
Ficaram de fora as creches Jardim Urubatã (na Hípica, Zona Sul) e Ana Paula (na Restinga, Zona Sul), iniciadas em meados da década passada e jamais concluídas. Essa última já estava descartada porque foi projetada sobre um terreno situado em área de preservação ambiental.
A decisão sobre quais escolas devem ser reiniciadas foi tomada a partir de uma consultoria que a Smed encomendou junto a empresa especializada. O diagnóstico mostra que as escolas estão em diversos estágios construtivos. De algumas obras, só serão aproveitados os alicerces. Já nas outras falta pouco para a finalização (veja abaixo a situação de cada uma delas).
TCE cobra responsabilidade de agentes públicos
O Tribunal de Contas do Estado (TCE) possui estudo sobre 22 creches de Porto Alegre que estão abandonadas ou apresentam defeitos de projeto e falhas arquitetônicas. E cobra providências a respeito dos prédios, por meio de uma inspeção especial pedida pelo Ministério Público de Contas (MPC). A interrupção nas obras de sete dessas escolas infantis foi tema de reportagem do Grupo de Investigação da RBS (GDI) no ano passado.
Todas as 22 creches foram projetadas pelo programa Proinfância, que previa recursos do Ministério da Educação (MEC) e de prefeituras. Dessas, sete estão inacabadas e as demais apresentam diversas falhas (algumas foram consertadas nos últimos anos). Entre os problemas constatados pela Inspeção Especial do TCE, estão: erros nos projetos das fundações das escolas, deterioração por falta de repasses de recursos, uso de terrenos sem regularização fundiária, umidade, infiltrações, materiais de má qualidade, e, por último, subcontratação de empreiteiras.
Feita em 2016, a análise resultou em decisão, do tribunal, de determinar tomada de contas especial relativa às escolas defeituosas, para quantificar prejuízos. A prefeitura respondeu aos questionamentos, mas o TCE mandou refazer a análise, por falta de detalhamento (não tinha atualização monetária e havia carência de documentos e de pareceres emitidos pelas instâncias técnicas). As informações foram complementadas e, inclusive, foram adicionados nomes de supostos responsáveis pelas falhas: engenheiros, fiscais de obras, donos de empreiteiras e gestores públicos.
O principal nominado pelo Ministério Público de Contas (MPC) é o ex-prefeito José Fortunati, porque era o gestor na época em que as obras começaram e foram interrompidas. São cobrados dele R$ 292,1 mil (valores de 2016, não atualizados), além da conclusão ou reforma dos prédios por parte da prefeitura.
Fortunati nega que tenham ocorrido irregularidades na construção de escolas durante sua gestão. Ele lembra que várias construtoras quebraram durante o período de construção das creches e que os recursos (e o fluxo de verbas) eram ditados pelo governo federal. Fala ainda que não só a prefeitura tinha dever de fiscalizar, mas também o Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE), impulsionador do financiamento das creches.
Fortunati reafirma que tem explicação para todos os questionamentos do TCE:
— Todos os documentos e projetos estão à disposição. Ressaltamos que as obras provenientes de recursos federais foram fiscalizadas pelo FNDE, através de empresa contratada pelo próprio MEC/FNDE — afirma o ex-prefeito.
A tomada de contas também cobra explicações do ex-prefeito Nelson Marchezan Junior, por suposta omissão no dever de concluir as creches. Contra ele não pesa multa ou pedido de devolução de dinheiro.
À reportagem, Marchezan disse que recebeu essa situação, como várias outras, com recursos "supostamente" disponíveis, com erros de projetos, licitações, e contratações. Os secretários que trabalharam com ele consideram que o Proinfância teve objetivos eleitorais e acelerou a projeção de escolas, sem as devidas condições para implementá-las. Aí ocorreu o abandono.
— Herdamos obras inacabadas, recursos perdidos. Apesar disso, concluímos algumas creches. Negociamos com a Unesco e deixamos reservados R$ 32 milhões para as obras. Não sei por que o atual governo só está executando agora, anos depois — estranha Marchezan.
Ainda falta muito para uma decisão final do TCE. No momento, o processo está na fase de intimação das pessoas físicas e jurídicas elencadas para responsabilização. Depois, o MPC dará novo parecer e, caso considere as explicações infundadas, o processo será submetido a julgamento por parte dos conselheiros do Tribunal de Contas.
A situação de cada escola
Há de tudo um pouco nas sete creches inacabadas de Porto Alegre. Algumas estão praticamente prontas, faltando apenas acabamentos. Outras sequer tiveram uma parede erguida, como constatou o GDI, em visita a cada uma delas. Veja a situação de cada uma:
Ana Paula (Restinga)
Nem é possível perceber que existe escola junto ao condomínio Ana Paula, um dos mais conhecidos da Restinga. O terreno onde deveria ser construída a creche está tomado por mato. O único sinal são pedaços de muros que assomam dentro de uma área que recebeu fundações, mas foi coberta de capim. A maioria dos moradores sequer sabe que ali estava projetada uma escolinha infantil (sim, estava, porque a prefeitura decidiu não retomar o projeto).
Raul Cauduro (Mario Quintana)
Está com toda a estrutura arquitetônica montada. Desocupada, foi vítima de furto de telhas, esquadrias e portas. Para desespero de vizinhos da creche, como o balconista de farmácia Leandro da Luz. Ele mora na frente do prédio abandonado e pretendia colocar o filho, Lorenzon, para estudar lá. Hoje o guri está com 11 anos e jamais viu a escola ser concluída. Teve de frequentar uma creche, também pública, situada a dois quilômetros da sua residência.
Jardim Leopoldina II (Rubem Berta)
De longe, parece pronta. De perto, é possível ver que o telhado foi dilapidado, não existem portas, janelas nem suas armações. O mato cresce junto ao prédio.
O porteiro Júlio César Moraes, que mora próximo da escola, se mostra cético quanto à retomada da construção. Ele teve de colocar o filho João Vitor, sete anos, numa creche situada em outra parte do bairro. E enfrentou meses de espera até conseguir vaga.
— Um absurdo — resume.
Colinas da Baltazar (Rubem Berta)
A estrutura de alvenaria está pronta. E só. Tudo o que poderia ser levado por ladrões, foi: telhas, portas, janelas, vasos sanitários, pias, balcões de cozinha, azulejos, piso. O local está totalmente depredado e pichado, com frases como "Onde está o futuro?" ou a resposta, em inglês: "There is no future". Centenas de sacos de lixo se acumulam no pátio interno. A creche inacabada virou moradia de dependentes químicos, lamentam moradores das vizinhanças, que preferem não se identificar.
Clara Nunes (Lageado)
Está tomada por mato e parece um casarão mal-assombrado. Fica numa rua de chão batido, com poucas residências perto. O interior está pichado, com dezenas de latas de cerveja espalhadas pelo local, paredes pichadas com desenhos e frases obscenas. Lixo se acumula por toda parte. Como nas demais, telhas e portas foram furtadas.
Exatamente ao lado da escola inacabada reside a dona de casa Vergínia dos Santos Araújo. Ela passa o dia cuidando de dois netos e dois bisnetos, que deveriam estar numa creche.
— Minha filha trabalha e não tem onde deixar eles — resume.
A moradora do bairro Lageado recorda que, a cada eleição, prometem finalizar o prédio escolar. Isso se repete desde 2015.
Moradas da Hípica (Hípica)
A creche está praticamente pronta, mas tomada por mato. Ladrões furtaram algumas telhas e janelas, mas a pintura está intacta, assim como a estrutura de alvenaria. A impressão é de que falta pouco para o prédio ser finalizado, embora sem luz, água ou esgoto.
O barbeiro Eduardo Ribeiro recorda que há mais de meia década escuta promessas de retomada das obras. Perdeu as esperanças. Viu a filha Maria Eduarda crescer sem creche no bairro.
— Será que sai agora? Duvido — sintetiza.
Jardim Urubatã (Hípica)
A escola inacabada está situada abaixo do nível da rua, num terreno tomado por ervas daninhas, um matagal do qual é difícil até notar que esconde um prédio. Tudo o que podia ser depredado ou furtado, foi. Só a estrutura de alvenaria resiste.
Os moradores da região já desistiram de um dia ver a creche finalizada e reagiram sem surpresa à notícia de que a prefeitura desistiu da construção.
Terão obras retomadas
- Raul Cauduro (Rua Maria Feoli Guaragna, bairro Mario Quintana) — percentual construído: 60%
- Colinas da Baltazar (Rua Lages, 124, bairro Rubem Berta) — percentual construído: 56,04%
- Jardim Leopoldina II (Rua Irmã Teresilda Steffen, bairro Rubem Berta) — percentual construído: 38,17% (será demolida e reconstruída)
- Moradas da Hípica (Rua Elvira Dendena, 156, bairro Hípica) — percentual construído: 82,46%
- Clara Nunes (Rua 1, paralela à Estrada Jaques da Rosa, bairro Lageado) — percentual construído: 64,13%
Não terão obras retomadas
- Jardim Urubatã (Rua Alcebíades Ribeiro, bairro Hípica) — percentual construído: 27,05%
- Ana Paula (Rua João Antônio da Silveira, 3.300, Restinga) — percentual construído: 6,81%