Um dia após a prefeitura de Porto Alegre afirmar que não pretende retirar a cobertura asfáltica de cima dos paralelepípedos no entorno da Igreja Nossa Senhora das Dores, que é bem tombado nacional, a reportagem de GZH escutou especialistas sobre o impasse. O Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) paralisou há um ano as obras de asfaltamento da Avenida Padre Tomé, no Centro Histórico, e recomendou a retirada do asfalto de cima do calçamento original.
— Caso não seja aceita (a retirada do asfalto), a procuradoria do Iphan orienta abertura de ação civil pública. Mas temos de aguardar a manifestação oficial da prefeitura — esclarece o superintendente do Iphan-RS, Leonardo Maricato.
Por enquanto, o embate está se desenvolvendo na esfera administrativa. O processo 01512.000015/2022-84, disponível para consulta pública no site do Iphan, mostra que a última movimentação, em 8 de dezembro de 2022, foi o encaminhamento da Minuta de Termo de Ajustamento de Conduta pelo Iphan ao prefeito Sebastião Melo, com cópia para o secretário municipal de Serviços Urbanos, Marcos Felipi Garcia. Neste momento, a autarquia aguarda resposta. Se o cumprimento da recomendação não ocorrer por parte da prefeitura, o Iphan poderá levar o caso para a esfera judicial.
A advogada Volnete Gilioli, que é especialista no assunto, explica o que acontece se a prefeitura não chegar a acordo com o Iphan e o impasse for judicializado:
— Será proposta uma ação civil pública pelo Ministério Público Federal (MPF) contra o município. Nesta ação, é possível o pedido liminar para que a obra continue embargada e há multa diária enquanto não ocorrer a retirada do asfaltamento irregular.
A advogada Maria Rita Cagliari comenta algo parecido:
— O MPF possivelmente vai ter de agir, porque é um bem tombado histórico não do município, mas da sociedade. O prefeito poderá ser responsabilizado também, porque atinge toda a coletividade — afirma a advogada, acrescentando: — Não é só o imóvel, no caso a Igreja das Dores, que é tombado. O entorno tem de ser preservado, porque ela isolada não contextualiza. O tombamento também protege o entorno. Por isso, a responsabilidade do município é bem ampla nisso.
No entendimento de Cagliari, cabe ao MPF agir:
— Muito embora o Iphan tenha a prerrogativa da defesa do patrimônio, quem efetivamente defende o patrimônio histórico é o Ministério Público Federal.
Cagliari também cita que a prefeitura terá de restituir a área como era antes da obra. E antecipa o que costuma acontecer nesses casos:
— Geralmente, o juiz impõe multa diária ao município. E haverá responsabilização do gestor.
No entendimento da advogada, cabe ao Iphan informar o MPF e também entrar imediatamente com ação civil pública para desfazer a obra da prefeitura. Além disso, avalia que cabe a outros órgãos se posicionar sobre o assunto:
— A Câmara de Vereadores pode intervir, propondo que o prefeito desfaça essa obra. A Câmara também deve proteger o patrimônio histórico.
Na época da obra no entorno da Igreja das Dores, um pedido de informação sobre a intervenção no local chegou a ser protocolado pelo vereador Leonel Radde (PT) à prefeitura.
Da mesma forma, o advogado Fábio César Rodrigues Silveira também avalia que, em caso de descumprimento da recomendação, poderá ser cobrada multa diária.
— Isso é caso de ação civil pública pelo MPF ou por algum órgão autorizado a ingressar com ação civil pública pedindo para a prefeitura retirar o asfalto — observa, completando: — Se eu fosse o Ministério Público, pediria uma multa diária pelo descumprimento da orientação do Iphan para retirada do asfalto.
O professor Eber Marzulo, do Departamento de Urbanismo da Faculdade de Arquitetura da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), acompanha o caso desde janeiro do ano passado.
— Na realidade, o parecer do Iphan não tem poder de lei. No entanto, há uma ilegalidade na ação da prefeitura, porque se trata de um patrimônio federal, cujo órgão responsável é o Iphan — pondera.
Marzulo, que tem mestrado e doutorado em Planejamento Urbano, afirma que a pavimentação da via pela prefeitura, sem autorização, é ilegal.
— A partir do parecer do Iphan, há condições de ações do Ministério Público, da sociedade civil, questionando a ilegalidade da pavimentação realizada pela prefeitura, que dependia de autorização do órgão federal. O ato é ilegal, e a resposta da prefeitura reitera a ilegalidade de seu ato.
A reportagem também procurou o MPF-RS, que está em período de recesso, para saber quais poderiam ser as consequências judiciais em caso de negativa da prefeitura. A assessoria de comunicação do órgão informou que o MPF-RS não se manifesta sobre situações que não são ainda concretas, como a possibilidade de o impasse entre a prefeitura e o Iphan ser judicializado.
Veja o que diz a legislação nessas situações
A portaria 187/2010 do Iphan prevê “multa de cinquenta por cento sobre o valor da obra irregularmente construída e demolição da obra”, no caso de construções que impeçam ou reduzam a visibilidade da “coisa tombada”, sem prévia autorização da autarquia federal (confira o que diz a portaria neste link).
Outra portaria do Iphan (26/2022) diz que “será vedada a remoção das pavimentações tradicionais nos espaços públicos vinculados aos bens tombados, exceto em casos de conservação e restauro, quando poderão ter peças substituídas por outras com as mesmas características das existentes (material, forma, cor, tamanho etc.)” (confira o que diz a portaria neste link).