Porto Alegre sediou um evento inédito em 1972, com a presença de delegações estrangeiras de diversos países. O 1º Congresso Brasileiro de Cibernética e Sistemas Gerais, realizado de 4 a 12 de novembro, na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), contou com a participação do guru internacional da ficção científica — Arthur C. Clarke, escritor britânico e autor do clássico 2001, Uma Odisseia no Espaço. O visitante previu como seria o mundo no ano 2000. Errou em algumas projeções como a de que o homem estaria vivendo em Marte e na Lua até o fim do século passado. O certo é que a cidade se transformou na “capital mundial da cibernética” durante aqueles dias.
— O Arthur Clarke era muito acessível, uma pessoa simples. Esteve aqui exatamente durante o lançamento do filme 2001, Uma Odisseia no Espaço. Era o grande craque do evento — recorda o economista aposentado, Heraldo Barcellos, de 86 anos.
O congresso foi badalado e trouxe visibilidade para a cidade. Porto Alegre, que possuía pouco mais de 903 mil habitantes, conforme o censo de dois anos antes, se tornou o centro das atenções. Durante o período do evento, foram consumidos 6 mil cafezinhos, enquanto as equipes de tradução trabalharam 13 horas ininterruptas por dia.
Barcellos, que vive atualmente em um apartamento na Rua Coronel Bordini, trabalhava em administração e contabilidade para empresas há 50 anos. E foi um dos coordenadores do congresso na Capital. Lembra que foi convidado para ajudar pelo idealizador e coordenador-geral do evento, o médico Nelson Pierini. Com memória apurada e muito material armazenado com zelo sobre o encontro que reuniu tantos cientistas e pesquisadores por aqui, cita em detalhes vários acontecimentos.
— Levei o Arthur Clarke para passear no meu carro e conhecer a cidade. Peguei ele no cinema Baltimore, na Avenida Osvaldo Aranha, e passamos por Redenção, Mercado Público, beira do Guaíba, Cais do Porto, Borges de Medeiros. Ele gostou da cidade. Só a presença dele era sucesso garantido — compartilha pouco mais de cinco décadas depois.
Zero Hora acompanhou os passos de Clarke durante sua estadia na cidade, assim como as palestras do encontro. O escritor de ficção científica desembarcou às 10h20min do dia 4 de novembro, no aeroporto Salgado Filho. Cercado por integrantes da comissão organizadora do congresso, fotógrafos e jornalistas, surpreendeu a todos ao tirar do bolso um pequeno aparelho e explicar:
O Arthur Clarke era muito acessível, uma pessoa simples. Esteve aqui exatamente durante o lançamento do filme 2001, Uma Odisseia no Espaço. Era o grande craque do evento
HERALDO BARCELLOS
Economista aposentado
— Eu tenho aqui o meu próprio computador com 30 mil transistores. Até pouco tempo atrás, um computador necessitava de 18 mil válvulas — disse para os repórteres na ocasião.
Segundo o escritor, o computador avisava quando ele cometia algum erro.
— É uma espécie de meu alter-ego — comentou.
De certa maneira, a conversa informal tinha relação com o tema do congresso, onde Clarke acabou palestrando, na noite do dia 5, às 21h, sobre como seria o mundo no ano 2000, a revolução na área das comunicações, além dos resultados básicos das comunicações feitas por satélites. Houve tradução para línguas como português, espanhol, francês e para o próprio inglês.
Entretanto, o visitante errou em algumas de suas previsões.
— É claro que até o fim deste século estaremos vivendo em Marte, assim como na Lua e, creio, em algum tempo, no universo todo. Existem muitos planetas e muitas luas. E a odisseia espacial não é ficção, é realidade.
Como Clarke foi descrito na época
Formado em Física e Matemática pelo King’s College de Londres, integrante da Sociedade Interplanetária Britânica e de outras organizações científicas, Clarke foi descrito pela reportagem da época como sendo “alto, careca, óculos de aros finos, terno cinza e pasta na mão”.
Enquanto conversava com jornalistas, exibia reportagens sobre sua casa na costa do Ceilão (atual Sri Lanka), às margens do Oceano Índico, e contava que tinha como hobbies a exploração submarina e a prática de safaris.
Na manhã seguinte à sua chegada, Clarke foi assistir ao filme 2001, Uma Odisseia no Espaço, do diretor Stanley Kubrick, no Baltimore, com outros 400 inscritos em um dos simpósios.
Antes de ir embora da cidade, o escritor ainda voltou a conversar com repórteres no apartamento 701 do Plaza Hotel, onde ficou durante sua estadia em Porto Alegre. Curiosamente, o visitante pegou seu pequeno computador e realizou um cálculo sobre explosão demográfica baseado na média daquele período do crescimento populacional do Brasil, que, então, era de 3%.
Segundo o levantamento particular, o país teria 19,2 pessoas a mais para cada brasileiro vivo na época nos próximos 100 anos (lembrando que ele estava em 1972); além de estimar, para 480 anos depois, 1,5 milhão para cada brasileiro. Toda essa demonstração foi para dizer que acreditava apenas em dois meios de transporte para o futuro — a bicicleta e a astronave.
É claro que até o fim deste século estaremos vivendo em Marte, assim como na Lua e, creio, em algum tempo, no universo todo. Existem muitos planetas e muitas luas. E a odisseia espacial não é ficção, é realidade
ARTHUR CLARKE
Em entrevista aos repórteres da época
Em parte, ele acertou — a bicicleta é uma realidade nas ruas de diversas cidades, inclusive na Capital. Além de fazer bem para a saúde, representa economia para o bolso e ajuda na preservação do meio ambiente por não ser poluente.
Por sua vez, as astronaves ainda fazem mais parte da ficção científica do que propriamente da realidade. Algumas naves não tripuladas viajam pelo espaço em missões específicas, e a Estação Espacial Internacional — esta sim com tripulantes —, é uma realidade.
Também é importante citar que o primeiro homem a ir ao espaço — o cosmonauta soviético Yuri Gagarin com a nave Vostok — realizou tal façanha em 12 de abril de 1961, mais de uma década antes do congresso. Na Lua, o homem deixou as marcas de seus pés em 1969. Ou seja, a tendência era a humanidade avançar em termos de viagens e colonização espacial.
Homem mais rico do mundo, Elon Musk projetou recentemente povoar Marte com 1 milhão de terráqueos até 2050. O bilionário estabeleceu como meta a construção de 100 naves espaciais por ano. A ideia seria enviar cerca de 100 mil pessoas da Terra para Marte quando as órbitas dos planetas se alinhassem favoravelmente, o que ocorre a cada 780 dias. Isso ainda não é realidade, mas cogitar essa possibilidade representa uma espécie de "plano B" para quando os recursos naturais se exaurirem por aqui.
Questionado se valeria tanto a pena pensar no futuro, Clarke respondeu que sim. A alegação foi de que “é no futuro que vamos passar o resto da vida”.
Por fim, refletiu de forma enigmática sobre o destino da própria humanidade.
— Nós, de carne e sangue, somos apenas meras formas transitórias no universo, enquanto as máquinas serão as senhoras absolutas do mundo.
Antes de embarcar para Londres, ainda visitou o Banco do Estado do Rio Grande do Sul (Banrisul), onde foi recebido pela diretoria da época.
Gaúcho Callegaro: um pioneiro na aplicação da cibernética à psiquiatria
O médico gaúcho Juarez Nunes Callegaro, 89, participou do congresso, onde abordou conceitos de cibernética. E conta detalhes que envolvem a realização do encontro na Capital.
— Comecei a dar um curso no Clube de Cultura sobre conceito de cibernética aplicada à psicologia, à psiquiatria e à educação. Um aluno chamado Nelson Pierini assistiu e depois organizou o congresso.
Callegaro, que tem consultório onde ficava antigamente o Baltimore, no bairro Bom Fim, vai adiante em suas lembranças:
Tive o mesmo sentimento que um jornalista de O Globo que veio cobrir o congresso. Ele realizou um levantamento e disse que o Brasil conseguiu a maior concentração de cientistas da história do mundo naquele ano de 1972. Aquilo me impactou muito, porque o Brasil foi visto com uma perspectiva de cibernética muito avançada
JUAREZ CALLEGARO
Psiquiatra participante do evento
— A tese fundamental foi do Norbert Wiener, que é considerado o pai da cibernética. Ele escreveu um livro chamado Cibernética: ou controle e comunicação no animal e na máquina.
Como Barcellos, Callegaro também recorda de Clarke e até de uma conversa com o escritor.
— O Arthur Clarke me disse na época: ‘Ah, o senhor é psiquiatra? Estou escrevendo um livro chamado Perfil do Futuro. Este livro vai ter todo um capítulo sobre a inteligência artificial que vai ficar a serviço do médico para diagnosticar e para ajudar no seu trabalho. A inteligência artificial será como uma secretária dele’. O Clarke previu isso e depois começou a acontecer — impressiona-se.
Callegaro era considerado um pioneiro na aplicação da cibernética à psiquiatria. E demonstrava um apurado senso crítico sobre os mais variados assuntos:
— O Brasil jamais vai solucionar o problema de doenças mentais enquanto se decide qual é o melhor sistema por meio de votos da entidade de classes — alertava há 50 anos.
Um dos pontos analisados pelo médico com os jornalistas naqueles dias dizia respeito à delinquência entre os jovens norte-americanos.
— O sistema freudiano libertou de maneira anárquica os instintos sexual e agressivo. O resultado é esta juventude que não sabe o que quer. Faltou informação no uso dos instintos — observou.
Também afirmou que o Rio Grande do Sul repetiria o erro dos Estados Unidos cometido até 1950 no sistema educacional, dizendo que a geração daquela época estava ainda pagando “por uma liberdade sem informação. É como dar um carro a um garoto que não sabe dirigir.”
Porém, voltando ao foco da tecnologia, o médico refletiu sobre algo que realmente se confirmou sendo uma realidade cinco décadas depois.
— A universidade deve dar oportunidade para que surjam novas ideias, através de experiências pilotos.
O Facebook, por exemplo, é uma rede social que surgiu em 2004 a partir de uma ideia de um aluno. Foi uma evolução de um site anterior de Mark Zuckerberg, na época estudante de computação em Harvard. O site, chamado Facemash, consistia em relacionar fotos das estudantes do campus, com opções para os visitantes darem notas e dizer quem era a garota mais sexy.
Em sua biografia na internet, Callegaro menciona, em terceira pessoa, sua participação no congresso. Eis um trecho:
"Na ocasião, adotou o modelo cibernético de pesquisa de Gordon Pask e Heinz Von Föerster, uma revolução científica que o levou a adicionar à medicina e psiquiatria o modelo cibernético, mudando o conceito de nutriente químico da medicina ortomolecular para nutriente químico-físico-informacional da nutrologia cerebral evolutiva. Ao novo movimento, pioneiro no mundo, denominou Medicina e Psiquiatria Ortossistêmica."
Questionado sobre o que representou ter participado do congresso, ele não esconde a satisfação:
— Tive o mesmo sentimento que um jornalista de O Globo que veio cobrir o congresso. Ele realizou um levantamento e disse que o Brasil conseguiu a maior concentração de cientistas da história do mundo naquele ano de 1972. Aquilo me impactou muito, porque o Brasil foi visto com uma perspectiva de cibernética muito avançada — avalia, 50 anos depois de participar de um momento histórico.
Outras atrações do congresso
Muitos assuntos abordados durante o congresso acabaram se materializando de forma visível nos anos posteriores. Em palestra na Famecos (atual Escola de Comunicação Artes e Design da PUCRS), o presidente do Conselho norte-americano de Inteligência Artificial, A.D.C. Holden, expôs que não haveria motivos para o homem temer o computador, por este ainda ser comandado pelo primeiro. Ao menos até aquela época.
Atualmente, o reconhecimento da voz humana pelos computadores já ocorre. A Alexa (software que interpreta comandos de voz para realizar determinadas tarefas) seria um bom exemplo. Os próprios olhos humanos já são reconhecidos por alguns programas. Isso sem falar nas digitais, que funcionam como senhas em países mais desenvolvidos em termos de tecnologia.
Por sua vez, o francês Jean de Larebeyrette, que havia dedicado mais de 30 anos de sua vida as pesquisas na cibernética quando esteve em Porto Alegre, apresentou os resultados de seus estudos, com base em novas moléculas sintéticas chamadas Barhybrit, que permitem que a matéria desempenhe suas funções independente do trabalho humano.
O pesquisador chegou a uma nova fórmula de eletrônica, cujas aplicações práticas usadas na indústria eletrônica e informática agem como reguladores para transistores, temporizadores, condensadores paramétricos e robôs, incluindo aparelhos automáticos.
O professor Christian Vauge, especialista em cibernética e logística industrial, se disse mais otimista (Clarke previu o futuro com certo pessimismo durante o evento) tanto em relação aos computadores como da própria cibernética no sistema industrial.
Natural da França, Vauge abordou o tema intitulado Aspecto Cibernético dos Automatismos Industriais e Logística Industrial, trabalho que desenvolveu em conjunto com os docentes Antonie Berard e Jean de Larebeyrette. Tratando especificamente dos canais de produção em uma empresa, Vauge ressaltou para os presentes que as estruturas cibernéticas mais ricas se encontravam na elaboração de produtos que fossem de primeira necessidade.
Em relação à poluição das indústrias, Vauge anteviu algo que se concretizou em parte. Para ele, a cibernética controlaria melhor a ecologia, o que pode ser testemunhado por imagens e controle por dados. O Instituto Nacional de Meteorologia (Inmet), por exemplo, acompanha o desmatamento na Amazônia por meio de dados desse tipo. Entretanto, o estudioso acreditava que o homem encontraria uma solução para dar fim à poluição. Isso não apenas não aconteceu como até piorou de forma bastante significativa.
Porém, a reciclagem cresceu muito, sendo realidade a separação do lixo nas grandes metrópoles do país. Mas é apenas um aspecto positivo dentro de um sistema mais complexo. Na verdade, o planeta segue, em termos de fontes de recursos naturais, sendo exaurido pelo homem. O uso desmedido da água ilustra com precisão esse fato.
— As indústrias jogam fora enormes quantidades de detritos ao invés de absorvê-los e aproveitá-los na agricultura — atestou em 1972.
O engenheiro Mário Sorretto abordou a implantação do metrô em São Paulo. E, durante sua palestra na PUCRS, revelou:
— Embora não haja enfoque cibernético no metrô, o centro de computadores é o ponto principal para seu perfeito funcionamento.
Já o presidente Leslie David Székely, da Associação para Unificação e Automação (AUA), de Jerusalém, demonstrou preocupação durante sua apresentação. E o motivo, conforme os relatos da época, foi que os homens responsáveis por sua segurança não apareceram para cumprir o dever.
Em sua explanação dividiu com a plateia o que pensava.
— O que se precisa na cibernética é uma interação das ciências, porque a natureza não produziu isoladamente fenômenos estudados pela filosofia, química ou física. Pelo contrário, todos esses fenômenos se vinculam entre si.
Matérias jornalísticas da época registraram que sua palestra foi de difícil compreensão.
“Sua teoria é difícil de ser compreendida pelos leigos e, mesmo defendendo uma forma de comunicação capaz de atingir todas as massas humanas, o cientista tem dificuldade em transmitir sua mensagem numa linguagem simples”, dizia trecho da reportagem.
Um detalhe interessante é que ele foi questionado sobre a possibilidade de o homem ser dominado e programado por computadores, perdendo os seus sentimentos. E alegou que apenas em 50 anos poderia dar uma resposta.
— Não é oportuno responder isso agora; só daqui a uns 50 anos, porque, embora a memória tenha cinco níveis de atuação, estamos ainda no primeiro, no mais baixo. E é isto o que importa no momento.
Uma das poucas mulheres palestrantes, a autora britânica-americana Alice Mary Hilton explanou acerca do tema intitulado Filosofia e Ciência Cibernética e seu impacto sobre os processos de aprendizagem, produção e política. Durante sua fala, destacou que o homem não tinha conseguido, até aquele momento, identificar como se processava o pensamento. Em função disso, não obtivera sucesso no desenvolvimento de máquinas que pensassem.
Novamente avançando o cenário em 50 anos, é fato que o homem projetou diversos computadores que realmente pensam, inclusive superando o próprio homem em alguns momentos, como no lendário caso do supercomputador Deep Blue, da IBM (Corporação Internacional de Máquinas de Negócios), que conseguia avaliar e examinar 200 milhões de jogadas de xadrez por segundo. Em 10 de fevereiro de 1996, o computador ganhou uma partida de xadrez, pela primeira vez na história, contra o campeão mundial, o russo Garry Kasparov.
Como foi o evento na PUCRS
A abertura oficial do 1º Congresso Brasileiro de Cibernética e Sistemas Gerais teve sessão solene às 21h do dia 4 de novembro de 1972, no Salão de Atos da PUCRS. Durante os dias em que ocorreu foram realizados quatro simpósios, oito cursos e apresentados 21 trabalhos desenvolvidos por cientistas brasileiros, norte-americanos, israelenses, italianos, húngaros, franceses, canadenses, ingleses, romenos, búlgaros, entre outros.
A realização foi da Associação Brasileira de Cibernética e Sistemas Gerais (ASBRACIS) com apoio da PUCRS. A supervisão ficou sob responsabilidade da Companhia Riograndense de Turismo (CRTUR), que pagou as passagens de avião para os congressistas e palestrantes convidados. A prefeitura ajudou, assim como a empresa Elevadores Sûr. Outras entidades e até os próprios voluntários da organização também auxiliaram.
Além disso, um telegrama enviado para os organizadores em 11 de outubro de 1972, assinado pelo ministro Extraordinário para Assuntos de Gabinete Civil e da Presidência, João Leitão de Abreu, informava sobre a autorização para repasse de auxílio financeiro no valor de 200 mil cruzeiros do governo federal para ajudar com as despesas do congresso.
A Singer Sewing Company (Divisão Friden) colaborou cedendo uma máquina Friden Flexowriter. Tratava-se de uma máquina de escrever elétrica resistente capaz de ser acionada não apenas por digitação humana, mas também automaticamente por vários métodos, incluindo conexão direta a um computador e pelo uso de papel fita.
A CRTUR instalou um guichê de recepção aos convidados no aeroporto, enquanto na PUCRS foram disponibilizados, durante o período do congresso, um serviço de telex e uma agência dos Correios e Telégrafos para que os participantes e a imprensa pudessem informar ao resto do mundo os acontecimentos. Ou seja, muita gente se envolveu para que tudo desse certo. A Transbrasil Linhas Aéreas, por exemplo, ofereceu seus aviões para realizar o transporte dos congressistas em território nacional.
Coordenador do congresso, o doutor Cláudio Krahe destacou, em declarações aos jornais da época, os objetivos do evento.
— É sensibilizar a classe médica para a cibernética, aplicações do computador no diagnóstico clínico e na manipulação de dados estatísticos, bem como sensibilizar os administradores de hospitais para o uso de computadores nos serviços de arquivo médico, estatística, contabilidade geral, levantamento de custos, controle de pessoal, farmácia e material.
As inscrições puderam ser feitas na PUCRS e os valores eram os seguintes — 420 cruzeiros (membros titulares); 330 cruzeiros (sócios individuais); 250 cruzeiros (membros aderentes do RS); 200 cruzeiros (membros aderentes de outros Estados); 180 cruzeiros (acompanhantes). Além disso, os preços eram de 150 cruzeiros (estudantes de outros Estados) e 200 cruzeiros (estudantes do RS), sendo que essas cifras podiam ser parceladas em até cinco vezes. As inscrições específicas para determinados simpósios custavam 100 cruzeiros — 50 cruzeiros para estudantes, que podiam parcelar em até duas vezes o valor. Não custa lembrar que o cruzeiro deixou de circular em definitivo no país em 1993.
— Naquela época, há 50 anos, só as pessoas mais evoluídas e com cursos se ligavam no tema da cibernética — diz Barcellos, acrescentando: — Achei muito interessante, que há meio século, as pessoas já tinham grande interesse pela cibernética.
O aposentado explica qual era exatamente sua função naquele encontro.
— Fiquei de meia-cancha entre os coordenadores de cada área e a coordenação geral do congresso.
Os funcionários públicos federais que participaram dos trabalhos tiveram suas faltas abonadas, e o governo estadual decretou ponto facultativo para todos os funcionários do RS participantes do congresso.
Entretanto, nem tudo saiu conforme o planejado. Houve alguns problemas, como o atraso de uma hora para o começo do Simpósio II, que abordava o tema Computadores na Cibernética Médica. O equipamento técnico para as apresentações não chegou no horário agendado. O problema influenciou também na palestra do médico inglês J. Hywel Jones, sobre Taxonomia Numérica e Análise Discriminativa Aplicada à Colite Não Específica, que precisou ser transferida de um dia para outro.
Mas onde havia, em Porto Alegre, indícios de implantação de computadores e tecnologia em 1972?
— Tinha algo de tecnologia na área médica. A automação estava entrando em hospitais e nas empresas. Lembro que na microscopia também — relata Barcellos.
A expectativa era perceptível. No dia 31 de outubro de 1972, Zero Hora publicou matéria com o professor Carlos Candal dos Santos, vice-presidente da Associação Brasileira de Cibernética e Sistemas Gerais, que possuía 150 associados e dois anos de existência na ocasião. O objetivo era explicar o que era, afinal de contas, a cibernética a poucos dias do começo do evento. Após tecer observações e citar alguns autores, o entrevistado não quis projetar o futuro da ciência em questão, mas sentenciou:
— Esta ciência ainda está no início. Em nenhuma época, ciência alguma atingiu um desenvolvimento tão rápido. Não é possível se calcular o estágio que atingirá, nem mesmo a curto prazo.
As coisas foram acontecendo em Porto Alegre. O cientista peruano Carlos Infante, por exemplo, chegou às 15h do dia 2. Em conversa com a imprensa, afirmou que o congresso era o mais importante já realizado na América Latina, em função dos renomados nomes que estariam na Capital. Entre os temas que Infante apresentou estavam Cibernética como Dinâmica dos Sistemas e Uma nova Psicologia da Cibernética, relacionados com os instintos e os atos automáticos do ser humano. Também realizou conferências a professores sobre Projetos de Reforma na Educação.
— Muitos entendem a cibernética como algo fantástico, que o poder dos robôs dominará a espécie humana. Mas o homem não pode criar nada que o domine — garantiu, ilustrando sua opinião com os automóveis, que, segundo discorreu, matavam muita gente não por serem máquinas, mas por descuido e desorganização do trânsito.
Enxame de abelhas na bandeira dos EUA
Um dos acontecimentos mais curiosos ocorreu ao meio-dia do dia 7 de novembro, quando houve uma invasão de abelhas africanas que pousaram em cima da bandeira dos Estados Unidos, hasteada em frente ao Salão de Atos da PUCRS.
Conforme os jornais da época, o eletricista de manutenção Artur Mendel, e seu auxiliar Juvêncio, depositaram o enxame dentro de uma caixa de madeira. O que chamou a atenção da imprensa foi que a dupla não tinha qualquer roupa ou equipamento especial de proteção. E tudo deu certo.
Conferencista mais jovem paquerava recepcionistas
Aos 33 anos, o espanhol Josep Aguilar-Martin era o mais jovem entre todos os conferencistas do congresso. Os jornais o descreveram como “irrequieto e muito comunicativo” e “paquerador das recepcionistas”. Apresentou o tema Aspectos Fundamentais da Filtragem Recorrente, em que definia seus estudos não como uma teoria, mas uma técnica que procurava classificar os sistemas de controle estocásticos.
Um momento antológico ocorreu quando alguém perguntou para ele, afinal, o que significava uma linguagem estocástica. Sua resposta foi desconcertante:
— Difícil, muito difícil.
Em termos mais acessíveis, o palestrante trabalhava com a teoria das probabilidades. Na época, o ramo fazia parte da Matemática moderna. O pesquisador encontrou seu instrumento de investigação na cibernética. Basicamente, através do acúmulo e seleção de informações, seria possível se prever o comportamento de determinado sistema em algum momento. Quanto maior o número de informações colhidas, quanto melhor sua combinação e seleção, maior a probabilidade de que as alternativas resultantes se aproximassem da realidade.
Em seu trabalho, os sistemas propostos eram descritos por equações matemáticas. O cientista ilustrou para a plateia o que tentava explicar.
— Quando se dirige um carro aqui, já notei que o mais comum é o Volkswagen, tenta-se manter seu funcionamento estável. Não existe, porém, uma equação exata que possa prever o bom funcionamento do veículo, só probabilidades — dividiu com os espectadores.
Difícil, muito difícil
JOSEP AGUILAR-MARTIN
Conferencista mais jovem do congresso tentando explicar a linguagem estocástica
Também chamou a atenção dos presentes suas impressões sobre as possibilidades de se prever o futuro.
— Se for amanhã, é possível prever; se daqui a um mês, dá-se uma ideia, mas prever para um ano, só dando uma vaga ideia, porque só se pode prever com base estatística e nunca de forma global. Não sou um vidente, mas um cientista.
Húngaros eram muito aguardados
Os cientistas da Hungria que vieram participar do congresso foram bastante assediados, especialmente por seus estudos sobre o uso de computadores para o diagnóstico de doenças. O assunto era incipiente naquela época, mas virou realidade depois em diversos países do mundo.
Durante o congresso, cientistas norte-americanos e ingleses haviam negado a possibilidade do uso de computadores para essa finalidade. Os húngaros disseram o contrário, que era possível. Apesar de não acreditarem na substituição total dos médicos por computadores na hora do diagnóstico, os visitantes do leste europeu afirmaram que os computadores poderiam receber programas de diagnósticos.
— Os médicos muito bons não terão muita necessidade do auxílio do computador — reconheceu o cientista István Madaraz, descrito pelos repórteres como o “mais elegante do grupo” por comprar roupas em diferentes países do mundo. — Mas aos médicos não tão bons, o auxílio da máquina será muito útil. Este auxílio refere-se a coleta de dados sobre as doenças e, a partir daí, à apresentação de porcentagens de probabilidades ao diagnosticar a doença de uma pessoa. Porém, o julgamento final será sempre do clínico — acrescentou.
Os húngaros desenvolveram na época uma máquina, adaptada em um veículo Opel, que tinha a pretensão de medir a fadiga do motorista, prevendo possíveis acidentes. O projeto unia duas teorias distintas, de Freud e Pavlov, que, conforme explicaram, só foi possível de ocorrer graças à cibernética.
E os húngaros acertaram em cheio. Em diversos hospitais do mundo, há diagnósticos elaborados por computador sob controle dos médicos. Além disso, a máquina realiza cirurgias mais delicadas, mas também controladas pelo homem.
Destaque para o pai das tartarugas eletrônicas
O jornal O Globo destacou o evento e a presença do doutor Grey Walter, considerado um dos quatro maiores nomes da cibernética mundial daquela época. Em sua edição de 5 de setembro de 1972 (quase dois meses antes da abertura do congresso), o jornal publicou matéria com a seguinte manchete: Cibernética trará ao Brasil o criador de tartaruga eletrônica.
“Grey Walter é conhecido como o pai das tartarugas eletrônicas, desde que em 1948 surpreendeu o mundo com a criação de dois robôs, Elmer e Elsie. O cérebro encefalografista, juntamente com sua mulher Viviane Walter Deovy, que é também sua assistente no Burden Neurological Institute, criou os dois robôs que têm a peculiaridade de não serem autômatos como os outros”, registrava trecho da publicação.
Segundo o jornal, Elmer e Elsie, as tartarugas eletrônicas em questão, possuíam uma sensibilidade complexa, adquirindo “certa personalidade”, e eram de uma nova espécie chamada Machina Speculatrix. O comportamento lembrava o de muitos animais.
Outra curiosidade é que houve visitas dos cientistas aos laboratórios de Física da PUCRS e da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). No primeiro, o francês Jean de Larebeyrette se impressionou com a qualidade dos equipamentos recebidos da Alemanha, mas percebeu que nunca haviam sido utilizados porque ninguém tinha capacidade de operá-los. Na UFRGS, os visitantes deram uma aula informal para os colegas brasileiros.
Saiba mais
Entre os participantes estavam diversos cientistas e estudiosos da época, como David Leslie Székely (Israel); Carlos Jaramillo Infante (Peru); Stuart Dodd, Thibaud Halvey e Mary Hilton (EUA); Josep Aguilar-Martin (Espanha); Jean Paul Buffelan, Jean de Larebeyrette, Jacques Petrel e Christian Vauge (França); Georges Boulanger (Bélgica); Mario Losano, Aldo Masturzo e Aldo Nigro (Itália); Oliver Wells (Inglaterra) e Constantin Balaceanu (Romênia), entre outros.
Também havia convidados de vários lugares do país, como Teodoro Oniga (Centro de Avaliação Tecnológica do Rio de Janeiro), Rose Marie Muraro (Editora Vozes de São Paulo), Enrico Poloni (Centro de Processamento de Dados da Universidade Mackenzie de SP), João de Scatimburgo (SP), Igor Tenório (Brasília) e Jayme Goldstein (PUC do Rio de Janeiro).
E como Barcellos relaciona tudo o que testemunhou há meio século com o mundo de agora:
— Hoje, a gente percebe que a cibernética voltada para a computação não está restrita apenas aos grandes escritórios na comparação com aquela época. Os computadores agora estão nos celulares — conclui.
Definição de cibernética
Conforme o dicionário do Google, cibernética é uma "ciência que tem por objeto o estudo comparativo dos sistemas e mecanismos de controle automático, regulação e comunicação nos seres vivos e nas máquinas."
Veja o tema dos principais simpósios do congresso de 1972
- Simpósio I - Cibernética e Sistemas Gerais como Ciência
- Simpósio II - Computadores na Cibernética Médica
- Simpósio III - Aplicação de Computador na Área do Direito
- Simpósio IV - Planejamento e Gestão Cibernética