Um dos mais antigos e tradicionais hospitais de Porto Alegre, o Beneficência Portuguesa, acumula queixas de atrasos salariais, dívidas, precariedade no ambiente funcional e nos atendimentos. Relatos desses problemas foram confirmados em investigações feitas pelo Ministério Público do Trabalho (MPT), pelo Conselho Regional de Enfermagem (Coren) e pela Vigilância Sanitária Estadual. Algumas das queixas também foram repassadas à reportagem de GZH.
Por causa de dívidas trabalhistas, a Justiça do Trabalho determinou a venda dos bens do hospital, conforme GZH revelou em reportagem nesta terça-feira (8). O valor obtido com o negócio servirá para quitar pagamentos com 489 credores.
O Beneficência é administrado pela Associação Beneficente São Miguel (ABSM), que também fazia a gestão em Campo Bom do Hospital Lauro Reus, onde há um ano e meio ocorreu a morte de 21 pacientes após falha no fornecimento de oxigênio à Unidade de Tratamento Intensivo (UTI). Em comum aos dois estabelecimentos existe um manancial de denúncias sobre carência de equipamentos, débitos trabalhistas e com fornecedores e falta de material para assistir aos pacientes internados.
Em Campo Bom, onde a maior parte do atendimento é via SUS, a precariedade levou ao rompimento do contrato com a ABSM por parte da prefeitura, em agosto. Outra entidade assumiu a administração. Em Porto Alegre, o Beneficência não atende pelo SUS, até por não possuir Certificado de Benemerência. A verba de custeio vem de planos de saúde particulares e do Instituto de Previdência do Estado (IPE).
Os relatos de atendimento precário no Beneficência são históricos e permaneceram durante a pandemia de covid-19, após a ABSM assumir a gestão desse hospital. GZH entrevistou funcionários e ex-funcionários do estabelecimento, que relataram uma rotina de debilidades nos serviços prestados lá. Eles formalizaram suas queixas em sindicatos das suas categorias, conselhos e também na Justiça do Trabalho.
Um dos depoimentos é de uma médica-cirurgiã que atuou na Unidade de Tratamento Intensivo (UTI) desde o início da pandemia até quatro meses atrás. Ela descreve que há carência de funcionários, a ponto de não conseguirem fechar a escala de trabalho.
— Durante a pandemia, era cena de guerra. Faltava tudo. Não tinha gaze, ventilador, equipe para colocar soro nos pacientes. Os doentes em situação grave, entubados, ficavam sem assistência. A pandemia foi diminuindo de intensidade, mas a situação não melhorou. Os pacientes com indicação de serem pronados (manobra fisioterápica em que o entubado é colocado de bruços) não recebiam esse tratamento, porque não tinha gente para fazer. Não existiam sedativos em número suficiente para os entubados. O Beneficência tinha relação péssima com fornecedores, que largaram o hospital de mão, e aí esses medicamentos não apareciam — resume a médica.
A cirurgiã diz que a situação melhorou em 2022, quando o hospital firmou mais convênios, mas mesmo assim problemas estruturais persistiram. Entre eles, falta de médicos, com sobrecarga de responsabilidades para enfermeiros e atendentes cuidarem dos pacientes.
Uma enfermeira e uma técnica em enfermagem centram suas críticas à precariedade do atendimento e à rotina de atrasos nos pagamentos. A enfermeira, que deixou o hospital há quatro meses, informa que sofreu parcelamento de salários nos últimos cinco meses em que trabalhou no Beneficência. A reportagem confirmou que esse problema ocorreu ao longo de todo o ano.
A enfermeira garante que funcionários não recebiam refeições no local e muitos não tinham condições de pagar por elas, porque o salário não era quitado em dia. Ela afirma que a higienização dos materiais era precária, por vezes, feita por um único funcionário por turno em todo o hospital, que havia carência de uniformes próprios — alguns eram doados —, falta de fornecimento de passagens de ônibus, ausência de depósito do FGTS, entre outras carências.
A técnica de enfermagem entrevistada trabalhou duas vezes no Beneficência. A primeira, há 10 anos. Retornou em 2020. Foi convidada para atuar na UTI covid, onde ficou um ano e meio. Ela comenta que é rotina os elevadores não funcionarem. Segundo ela, não foram poucas as vezes que o corpo de alguém que faleceu ficou preso no elevador.
— De noite não tinha manutenção para esse equipamento, era feita por um rapaz da higienização. Ele fazia de tudo. Tinha dias que era tanta goteira do teto que alagavam as enfermarias e banheiros. Não tínhamos local certo para uma hora de descanso — descreve a técnica de enfermagem.
A técnica reconhece que a UTI foi reformada e melhorou, mas vários equipamentos não funcionavam, como alguns respiradores que estavam estragados. Ela diz que a fisioterapeuta trabalhava só até a meia-noite, depois quem prestava o serviço eram os técnicos de enfermagem, que não são capacitados para tanto. A profissional disse que, quando foi demitida, o hospital ficou devendo R$ 9 mil e ela teve de ingressar na Justiça para tentar receber.
— Era comum receber apenas R$ 600 no quinto dia útil do mês, quando ninguém deveria receber menos de um salário mínimo. Havia promessa de receber o restante dia 20, quando o IPE enviasse valores devidos ao hospital, mas não vinha. Um descaso total com uma equipe que permaneceu trabalhando e organizando suas contas com o restante do valor — comenta a técnica, que diz ter sido demitida sem maiores explicações e sem receber grande parte do devido, como o 13º salário, Fundo de Garantia, o salário do mês, o aviso prévio e os dias proporcionais das férias.
As apurações
O Conselho Regional de Enfermagem (Coren) confirma que uma fiscalização do Beneficência começou em 2021 e que desde então foram confirmadas falhas, como a existência de apenas um enfermeiro para cuidar de duas a três unidades.
A responsável-técnica do setor de enfermagem do hospital foi notificada e ficou de apresentar relatório sobre melhorias.
— A fiscalização comprovou atrasos de pagamentos para enfermeiros e técnicos de enfermagem (também regulados pelo Coren), esterilização de material de forma inadequada e falta de EPIs (máscaras e aventais). Em 12 de abril, existiam 13 enfermeiros no quadro do Beneficência, para as 24 horas do dia. Média de três por turno, só que nem isso, já que sempre algum está de folga. É pouca gente. A própria ABSM admitiu a falta de pelo menos seis enfermeiros, eles têm 15 no total, para todos os turnos — constata João Carlos da Silva, enfermeiro coordenador do Departamento de Fiscalização do Coren-RS.
Como as irregularidades misturam questões trabalhistas e sanitárias, o Coren enviou relatório para o Ministério Público do Trabalho (MPT) e para a Vigilância Sanitária Estadual. Agora o conselho fará uma audiência de conciliação exigindo um cronograma para que a instituição mantenha padrões mínimos de atendimento, com contratação de profissionais de enfermagem, informa João Carlos.
— Com relação à falta de EPIs, foram enviadas queixas à Vigilância Sanitária. Sobre atrasos nos vencimentos salariais, para o MPT — conclui ele.
O Ministério Público do Trabalho confirma que recebeu do Beneficência a estimativa de regularização dos salários a partir de agosto de 2022. Como não houve demonstração de que a situação tenha sido regularizada e que os salários ainda estavam sendo quitados com atraso e de forma parcial, o MPT emitiu no dia 4 de novembro notificação para que, no prazo de 15 dias, a diretoria do hospital informe se há perspectiva de regularização dos salários. Caso positivo, em qual mês isso deverá ocorrer, indicando também a origem das fontes de receitas para tanto e, caso negativo, as razões para não ser possível regularizar o pagamento dos salários.
Contraponto
Alan Costa, gerente jurídico da ABSM, não quis se manifestar sobre os problemas listados na reportagem.