As estátuas dos poetas Carlos Drummond de Andrade e Mario Quintana deixaram de olhar para mãos vazias na manhã desta sexta-feira (7). Por volta das 9h, teve início o processo de recolocação de um novo livro de bronze no monumento, localizado na Praça da Alfândega, no Centro Histórico de Porto Alegre. A peça original foi furtada em 2007 e a substituta, há sete anos. Desde então, a escultura estava sem o item que representa a literatura.
Com oito quilos, a nova peça foi elaborada pelo escultor uruguaio Mario Cladera, radicado na Capital. O livro foi soldado nas mãos de Drummond, um trabalho que levou quase cinco horas. A recolocação do objeto é uma iniciativa da Secretaria Municipal de Cultura e Economia Criativa (SMCEC), por meio de uma parceria com o Sinduscon-RS que possibilita a revitalização de monumentos históricos de Porto Alegre.
— Me procuraram sabendo que sou um escultor que tem uma fundição, e também procuraram a Eloisa Tregnago, que é uma das autoras. Foi ela que indicou como fazer o novo livro, porque não temos mais o original. Então, a partir de uma agenda, fizemos novamente o livro de bronze — explica Cladera, comentando que a produção da peça levou cerca de dois meses.
De acordo com o artista, foram inseridos dois pinos de aço no momento da recolocação do livro como reforço para ampliar a segurança:
— Agora estou fazendo um processo que vai deixar muito mais preso do que já esteve. Eu fiz a colocação de dois pinos de aço, entre uma das mãos e o livro, que não fica aparente porque eu os instalei e, por cima, coloquei solda de bronze. Depois, estamos fechando com o máximo possível de solda todas as regiões onde tem contato do livro com as mãos.
Inaugurado em 26 de outubro de 2001, o monumento de bronze, composto por um banco e duas estátuas, foi encomendado para Xico Stockinger, já falecido, pela Câmara Rio-Grandense do Livro, em função da 47ª Feira do Livro de Porto Alegre. A escultora Eloisa Tregnago participou da construção da escultura, que é um cartão-postal da cidade, mas já foi alvo de outras ações de vandalismo.
Origem da iniciativa e segurança
A ideia de recolocar o livro nas mãos de Drummond surgiu em julho deste ano, após o episódio em que jogaram tinta amarela sobre o monumento, quando Zalmir Chwartzmann, coordenador do Projeto Construção Cultural - Resgate do Patrimônio Histórico do Sinduscon-RS, soube que a estátua estava sem a peça há anos. Ele conta que ligou para o Paulo Amaral, que é diretor de artes visuais do município e intermediou o contato com Cladera, e o artista prontamente se disponibilizou para realizar o trabalho.
— Percebemos que tinha esse problema e demos um jeito de resolver, agora está feito. Fizemos porque a cidade merece, porque a cultura merece. A nossa preocupação é ajudar a cidade, fazer com que seus monumentos tenham a dignidade que eles merecem ter, do jeito que foram criados — afirma Chwartzmann.
Enquanto observava Cladera e o filho, Sebastian Cladera, trabalhando no monumento, o coordenador do Projeto Construção Cultural também estava atento às pessoas que passavam. Ele chegou ao local por volta das 10h30min desta sexta e, até as 11h, relata que muita gente parou para conferir o que estava sendo feito e comentar sobre a iniciativa. Isso, segundo Chwartzmann, mostra como a comunidade se apropria e dá importância para as esculturas.
Para o secretário da Cultura de Porto Alegre, Gunter Axt, a restauração do livro é quase como um reencontro com todo o simbolismo vibrante que a obra tem para a cidade. Ele destaca que o monumento se tornou um dos mais queridos entre os porto-alegrenses porque está muito próximo das pessoas, que costumam tocar e interagir com as esculturas quando passam pela Praça da Alfândega.
— Ele tem um simbolismo muito grande, na medida em que faz uma interlocução com algo que acontece nessa praça, que é a Feira do Livro. É um dos eventos mais queridos e tradicionais da cidade, e que também mostra para o Brasil o quanto nós levamos a sério o livro e a literatura — comenta Axt.
O secretário ressalta que essa restauração faz parte de uma reação do poder público ao abandono e ao vandalismo e que ela só foi possível graças a uma rede de parceiros, como Cladera e o Sinduscon-RS, que vem apoiando outras iniciativas de recuperação de monumentos da Capital, como o Laçador. Em relação à segurança do monumento, Axt reforça a inclusão dos pinos de aço citada por Cladera, mas admite que isso não blinda a obra de outros tipos de vandalismo.
Por isso, a secretaria está construindo uma proposta que vai virar um termo de referência para a zeladoria dos monumentos — são cerca de 300 cadastrados na Capital:
— Esperamos que isso inclua limpeza, pequenos reparos, iluminação e segurança, com câmeras monitorando efetivamente esses monumentos. É uma ação integrada, realmente não podemos mais instalar um monumento, uma obra de arte, em um espaço público e abandoná-lo. É preciso ter uma gestão, manutenção e estratégia para isso.
Processo trabalhoso como há duas décadas
Quem olha para o livro recolocado nas mãos de Drummond pode nem imaginar que sua produção foi muito trabalhosa, já que é toda artesanal. Para fazê-lo em dois meses, Cladera contou com a ajuda do filho, Sebastian, que é músico, escultor e foi criado dentro de um ateliê, e da assistente, Cintia Ferreira, produtora cultural e artista visual que auxiliou o escultor em todo o processo de fundição.
Cladera aponta que o desenho faz a peça parecer leve, mas para levantá-la é preciso usar as duas mãos. Explica ainda que soldar não é a parte fácil porque é necessário fazer testes com as soldas, além do acabamento da escultura. O artista também enfatiza que restaurar a obra gera nele um orgulho muito grande, principalmente porque Xico era uma referência para o seu trabalho e porque Porto Alegre foi a cidade que o acolheu quando tinha 19 anos.
— Para mim, é uma satisfação poder ajudar a manter não só o trabalho, mas a memória do Xico. Além disso, fiz minha carreira toda aqui, então, estou devolvendo para a cidade uma coisa que sei que o povo de Porto Alegre preza. É gratificante poder estar fazendo isso pela cidade — afirma.
A escultora Eloisa Tregnago, que trabalhou ao lado de Xico no monumento, conta que a obra foi toda modelada em argila e que foi levada para São Paulo, onde foi fundida. Para o livro original, utilizaram uma agenda antiga, que tinha bom formato e rigidez para a escultura. Desta vez, procurou uma agenda idêntica e entregou a Cladera para que a peça ficasse igual à original.
Questionada sobre o sentimento de ver a obra como foi entregue há mais de 20 anos, Eloisa se emociona:
— Sinto saudade do Xico. Queria que ele estive aqui para ver.