Em uma casa de shows da zona norte de Porto Alegre, Maria Laura Granada, 24 anos, pula incansável sobre um salto 13 centímetros, Kloe Saviñon, 27, desfila o look de tule transparente com paetês que levou dois dias para costurar e Ester D-Diamonds, 25, balança o rabo de cavalo loiro inspirado na Madonna, detalhe de uma produção de quatro horas.
Elas integram a mais nova geração de drag queens da cidade. Os expoentes dessa cena se multiplicam pela noite, estimulados por reality shows com a temática e por drags brasileiras alçadas a estrelas do pop — Pabllo Vittar e Gloria Groove já são as mais seguidas do mundo no Instagram.
A maior parte das drag queens são homens gays que, por lazer ou profissão, usam roupas, peruca e maquiagem para adquirir uma imagem feminina. Há as mais fashionistas, que focam suas energias em produções “bafo”, postando a transformação nas redes sociais. Também tem quem faça performances em dança, atue como DJ ou assuma uma postura mais caricata para o stand up comedy. Mas o feijão com arroz da arte drag segue sendo o lip sync. É quando elas dublam grandes divas da música, caprichando na expressão corporal e no carão.
O casting de um único bar da Cidade Baixa já soma 35 drag queens. Elas se apresentam de sexta-feira a domingo no Drag Bar Workroom, aberto há cinco anos na Rua Lopo Gonçalves.
— A gente vê cada vez mais gente com interesse de se montar. Acho que tem a ver com as pessoas estarem questionando mais sobre preconceitos, sendo quem elas querem ser sem medo — opina o dono do bar, Rodrigo Kras Borges, 33.
Através das suas personas, muitas se sentem mais confiantes para defender a causa LGBTQIA+ e falar o que pensam. Maria Laura Granada, a drag que você visualizou dançando acima, não tem a mesma coragem quando responde por Lauro Gesswein.
— Tem muitas coisas que, de Lauro, eu não iria comentar. Mas, se eu tô montada, não desce. A Laura é bem mais do afronte, é de falar mesmo — ressalta o estudante de teatro de 24 anos.
A própria Gloria Groove sente algo parecido, como relatou em entrevista ao programa Timeline da Rádio Gaúcha. O paulista Daniel Garcia, 27, que dá vida a Gloria, uniu tudo o que aprendeu como cantor e dublador nos 20 anos de carreira a “uma noção de luta”.
— Com a Gloria, eu consegui me enxergar. É impressionante a força que o alter ego tem de expressar o que está dentro — afirmou.
Se até poucos anos atrás um show drag era um produto underground, restrito a bares LGBTQIA+, Gloria obteve o combo completo de pop star em Porto Alegre na noite de 20 de abril. Ela lotou o Pepsi On Stage na sua terceira passagem pela Capital, com fãs chorando e gente espremida contra os gradis de proteção gritando seu nome. O evento contou até com tradução simultânea para linguagem de sinais, feita por uma intérprete também drag queen no canto direito do palco, a canoense Rita D’Libra, 31.
Antes do show, Gloria contou a GZH que se emociona quando enxerga gente montada no público. E teve que controlar algumas vezes as lágrimas durante a apresentação.
— Obrigada por deixarem eu ser o seu espelho aqui em cima — foi o que disse quando subiu ao palco.
Enquanto Gloria cantava hits como Bonekinha e A Queda, a drag queen Sarah Vika ditava a trilha sonora na boate Cabaret, no centro de Porto Alegre, onde acontecia a 11ª Werk, edição comemorativa ao aniversário do bar Workroom.
Com uma peruca loira chanel, um vestido prateado italiano e óculos coberto por pingentes de cristal, Sarah passava uma imagem de elegância e poder atrás da mesa de discotecagem, que chegava quase a intimidar.
Com a drag, o publicitário Rafael Mello, 30, já venceu uma competição de maquiagem de um programa da GNT e virou garota propaganda da Avon. Neste ano, participou do reality show de canto Queen Stars Brasil, da HBO Max.
Rafael se motivou em criar uma persona assistindo ao reality show de talentos RuPaul’s Drag Race, responsável por levar a cultura queer para o mainstream. Hoje, o programa americano tem 13 das 14 temporadas disponíveis na Netflix, mas, na época, exigia que fosse baixada na internet, e sem legendas.
— Quando comecei, havia uma baixa muito grande de drag em Porto Alegre. A grande virada de chave ocorreu ali por 2015, 2016, quando RuPaul’s Race ficou muito popular aqui — conta Rafael.
Faz cinco anos que largou o emprego em agência de publicidade para viver de arte. Além de DJ, Sarah faz performances de dublagem e produz conteúdo para as redes sociais — tem mais de 30 mil seguidores no Instagram.
A noite porto-alegrense também tem drags que se montam por lazer, sem pretensão de ganhar cachê. O auxiliar veterinário Guilherme Oliveira, 28, foi para a festa Werk vestido de Nathaly Kelsen, e o namorado, o contador Sergio Henrique Oliveira, 33 anos, de Tinna Oliver.
Foi a primeira vez que o casal saiu junto de drag queen. Na verdade, ali eram amigas.
— Não dá para chamar de amor porque eu não sou lésbica — corrige Tinna. — É que entra a drag e sai o menino.
Sergio adorou a novidade, embora a personalidade afrontosa da sua drag não admita. Tinna acusava Nathaly de esticar seu body de estampa cobra e de atrasar a saída.
— Ela levou cinco horas e meia pra ficar pronta. Eu estava prontíssima, faltando só subir o fecho do vestido, e ela ainda botando a peruca — queixava-se.
As horas na frente do espelho são recompensadas pelos olhares que recebem ao entrar em uma boate montadas. No Cabaret, Raí Cogan Mena Barreto, 24, já foi em mais de 50 festas, sem chamar muita atenção. Já como Scarlet Siren Bloom, virou “um acontecimento”.
— Assim todo mundo te olha, todos vêm falar contigo — diz a drag de 1m88cm de altura, fora os 15 centímetros de salto.
História das drags na Capital
A primeira boate LGBTQIA+ de Porto Alegre abriu as portas em 1971, na Praça Jaime Telles, no bairro Partenon. A Flower’s ostentava o slogan “A Glória do Gênero”.
Não se falava ainda de drag queens nessa época. Os espetáculos ali eram feitos por travestis, baseados em sucessos de Hollywood ou da Broadway — tinha um casting de pelo menos 18 dançarinas.
Charles Machado destaca a travesti Carla Campos como a maior estrela que se apresentou na Flower’s, envolta em plumas e paetês.
— Ela abriu caminho para todas nós — diz o artista, que há 28 anos se apresenta como a drag Charlene Voluntaire.
O passo seguinte veio com as transformistas. Gloria Crystal foi uma das pioneiras, no final dos anos 1980. Conta que chegavam nas boates “de menino”, se produziam no camarim para fazer o show e logo se desmontavam.
Ela fazia batalhas de dublagem, e quem ganhava era premiado com duas latas de refrigerante. Acabaria participando de protestos por cachê anos mais tarde, mas nada a tirava do palco.
— Me sentia diva, completamente diva. Tinha um pouco de Moulin Rouge nesses lugares, tinha um glamour de boulevard que não se encontra mais hoje em danceterias — rememora.
Na década de 1990, as drag queens se apresentavam em boates como a Enigma, na Pinto Bandeira, Bar da Vanda, na Getúlio Vargas, e Vitraux, em atividade até hoje com shows de drags na Rua da Conceição, no bairro Independência. Dandara Rangel, conhecida pelos covers de Alcione, e Rebecca McDonald’s, que estrelou o curta-metragem Au Revoir Shirley, são dessa geração também.
— A Rebecca era um mito, tinha uma presença cênica incrível, não só com o corpo, mas com o olhar. Fora a criatividade. Ela pegava qualquer coisa e fazia um figurino: cortina, tapete de banheiro de plástico — conta Charles Machado.
Se hoje é possível comprar de tudo pela internet, naquela época as drags tinham que recortar cílios postiços de papel. A maquiagem era muito difícil de encontrar também, não raro usavam pasta d’água para cobrir o rosto e começar a marcar os contornos femininos
Mas essas não eram nem de longe o grande problema que as pioneiras enfrentavam, como lembra Gloria Crystal. Durante a ditadura, travestis e transformistas podiam ser presas se saíssem na rua vestidas de mulher. Recorda também do preconceito vivido durante a epidemia de HIV nos anos 1980. Ficaram muitos anos isoladas em em guetos, como eram chamados estabelecimentos frequentados pelo público LGBTQIA+.
— O que eu gostaria de dizer para as novas drags é: viva esse momento de construção, de liberdade. Foi muito difícil para essas portas se abrirem — aconselha Crystal.