As unhas postiças contornam a taça de gin tônica. São tão grandes que fazem uma curva na ponta, de quase 90º, e foram coladas com Super Bonder para evitar qualquer contratempo.
A peruca rosa é usada sob uma boina de estampa camuflada, que combina com o vestido, curto. No chão, uma mala de alças guarda outro look para a segunda metade do show: um macacão de paetê, rasgado em lugares estratégicos para evocar sensualidade, e a cabeleira loira, que é como ele a enxerga.
— Cassie, vamo? — pergunta o dono do bar, na porta do camarim.
Há 23 anos, Nilton Gaffrée Júnior, 49, se apresenta na noite de Porto Alegre como a drag queen Cassandra Calabouço. Faz dublagem de grandes divas da música (lip sync) e piadas e provocações em formato semelhante ao do stand up comedy.
GZH acompanhou o porto-alegrense da transformação no banheiro do apartamento no bairro Floresta à apresentação da Cassandra, ao mesmo tempo, seu ganha-pão e a forma que encontrou de expressar sua liberdade.
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Júnior abre a porta de bermuda jeans e suéter cinza abotoado no meio, deixando uma música da Kylie Minogue escapar pelo corredor do prédio. Ele apresenta rapidamente a cadela Nicky, que resgatou machucada na rua há alguns anos, e se apressa para começar a montagem. Passa das 16h30min, o show está marcado para as 21h no Drag Bar Workroom, na Cidade Baixa.
A maleta de maquiagem de três andares já está aberta no chão do banheiro. Senta-se à uma pequena penteadeira, espremida entre um armário coberto por cosméticos e o box do chuveiro. Para esconder as sobrancelhas, passa cola em bastão e corretivo laranja por cima. Daí vem a primeira camada de base, selada com pó compacto, e a segunda camada. A preparação leva pelo menos quatro horas, entre raspar a barba, aplicar grossas camadas de maquiagem e colocar o vestido, esticado cuidadosamente sobre a mesa pela assistente Vanise da Silva.
Júnior começou a se vestir de mulher para receber os amigos em casa com a única pretensão de fazê-los rir. Aos 26 anos, foi convidado por um deles para fazer um show no Ocidente, boate no bairro Bom Fim. Ficou reticente no começo, mas topou.
— Fui com uma peruca branca, horrível, um tamanco de plástico, horrível, um collant, horrível... Foi incrível, eu adorei!
Guarda-roupa, maquiagem e estilo foram coisas que adquiriu com o tempo. Hoje, tem mais de 90 perucas. Guarda elas no quartinho de empregada onde dormia quando criança, ali naquele mesmo apartamento na Avenida Cristóvão Colombo.
A vontade de se montar veio da magia que sempre viu no universo feminino.
— Mulheres me fascinam. É como se a Cassandra fosse uma ode às mulheres que habitam meu imaginário e a minha vida.
Ele se refere à mãe e às três irmãs, que via se arrumando em casa, e aos grandes nomes do pop. Na infância, era um menino tímido e apaixonado pela Gretchen. Via alegria “naquela figura que sorria e rebolava tanto”. Foi sua primeira diva.
Era xingado e apanhava dos colegas na escola.
— Nem sabia o que é ser viado. Mas, se estava apanhando por isso, era a única coisa que não queria.
Júnior cresceu em uma família católica. Teve a primeira relação com um homem aos 21 anos, e antes disso tentou namorar meninas.
O nome da sua persona veio dessa época. Após terminar com uma namoradinha, foi cortar o cabelo e abrir o coração em um salão na Coronel Vicente. Ignorando que o motivo do sofrimento era uma menina, o cabeleireiro profetizou:
— Você ainda vai ser uma grande drag queen. Já sei até o nome: Cassandra Hills. Não: Cassandra Calabouço. Porque vai ficar preso na maior parte do tempo e só vai sair de vez em quando.
Antes da previsão se concretizar, Júnior se formou em biblioteconomia e trabalhou por muitos anos em bibliotecas de faculdades. Largou o emprego de carteira assinada em 2015 para viver dos cachês de Cassandra, além da carreira na dança. Participou de duas companhias de Porto Alegre. Chegou a ganhar o Prêmio Açorianos em 2009, como o melhor bailarino — guarda o troféu na estante da sala.
Também criou o workshop Pimp My Drag, que teve cerca de 50 alunos em seis edições. O objetivo era ajudar na criação de personas, com aula de estilização de peruca, de maquiagem e até um módulo de história e contexto da arte, onde queria deixar bem claro que “não dá para fazer cosplay de drag queen”.
Um lápis escuro dá contorno à boca, que depois vai ser pintada de batom laranja e coberta de glitter. Júnior refaz se algum detalhe que não ficou do jeito que quer.
— Agora eu tô fazendo a boca da velha da Praça É Nossa — critica-se.
Ele não se considera perfeccionista, mas visivelmente se cobra muito. Culpa o signo: Sagitário com ascendente em Touro. Já Cassandra, que fez sua estreia nos palcos em um 18 de novembro, é escorpiana: autossuficiente e intensa. E sexy, acrescenta.
Júnior gosta de pets, folhagens, adora lavar a roupa; Cassandra é drag queen “rueira”, curte dançar e sensualizar.
Júnior prioriza peças discretas no guarda-roupa que divide com o namorado; Cassandra tem um closet só para ela, explodindo com tanto sapato, vestido curto e paetê.
Cassandra usa o perfume francês Alien de Thierry Mugler; Júnior, um spray corporal em tubo de plástico comprado em uma farmácia.
— A vaidade é toda dela.
Isso reflete também na atitude. A persona drag, conta, é quase como uma armadura. Tem coisas que a Cassandra faz ou fala que o Júnior nunca teria coragem. Especialmente no palco. Gosta de levar a alegria, mas também gosto de levar a dúvida, a acidez, o sarcasmo. Gosta de provocar.
Júnior não sabe responder a altura exata da produção em que vira Cassandra.
— Em algum momento — já lhe disseram — o olhar muda.
No final de tarde, isso aconteceu entre o delineado com lápis azul claro e os cílios postiços. Ao virar-se da penteadeira em direção à repórter, sentada no chão do banheiro, já não tinha mais nada do sorriso acanhado. Agora o jeito de encarar era altivo e carregado de atrevimento.
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Já é Cassandra quem está na frente do espelho, e se apressa porque já escureceu. Gruda os cílios de quase três centímetros de comprimento. São três camadas, uma sobre a outra.
—Hoje eu quero cílios pra fazer vento — brada.
O namorado chega em casa disposto a ajudar. Tiago Nicoloso entra no banheiro anunciando que trouxe os biscoitos de queijo que a Cassandra consegue comer sem borrar o batom. Logo traz um copo de água com um canudinho para ela tomar o remédio que esqueceu.
— Se não fosse com ele, não seria nenhum — comenta Cassandra, sorrindo.
Após terminar um casamento de anos, Júnior se arriscou pelos famigerados aplicativos de paquera. Quase sempre era bloqueado ao responder sua profissão. Jamais pensou que encontraria o seu novo amor vestido de drag queen.
Os dois se conheceram em 2019 na Bienal da Arte Têxtil, no Sesc. Cassandra desfilou, e Tiago, que é professor de crochê e tricô, foi como convidado.
Tinha uma mesa com uns últimos petiscos no final do evento. Cassandra não gosta de comer em público, mas naquele dia a fome venceu. Ao atacar uma torradinha sem graça, sentiu uma sombra colada nela: eram os 1m94cm de Tiago debruçados sobre a mesa na tentativa de alcançar uns quitutes mais atraentes que sobraram longe da borda.
— Furou a fila e nem oferece — disparou a drag queen, fazendo ele quase se engasgar de vergonha.
Tiago se pôs reto de pé e pediu desculpa de boca cheia. Até esticou um salgadinho em direção a ela, que recusou — “era brincadeira”. Ficou por aí a conversa.
Foi Tiago quem tratou de procurar Cassandra nas redes sociais — queria saber quem estava por trás daquela maquiagem toda. Marcaram um café e não desgrudaram mais. Passaram a morar juntos na pandemia.
Enquanto Tiago conta a sua versão do encontro, Cassandra se isola no quarto para aquendar. É uma técnica onde empurra os testículos para cima e o pênis para trás, para não marcar volume na roupa. Na sequência, bota uma calcinha da marca NoNeca (Neca é pênis em Pajubá, como se chama o vocabulário criado pela comunidade LGBTQIA+). Diz que não dói. Pelo menos não tanto quanto a cinta modeladora —“PP”, destaca, parecendo orgulhosa.
Cassandra coloca um vestido com estampa militar e chama o namorado para ajudar a apertar o espartilho. Tiago puxa os fios soltos nas costas com força, mas não o suficiente.
— Mais! Ainda estou respirando!
Daí Júnior cobre a cabeça careca com a peruca, bota sapatos de salto 15 e as famigeradas unhas postiças. Cassandra precisa tocar a tela do celular com o nó do dedo para pedir um carro até o Workroom.
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O bar foi inspirado no reality show RuPaul's Drag Race. O nome e a decoração fazem referência ao grande camarim do programa, onde as drag queens preparam seus looks e ensaiam para as provas.
O Workroom, destaca o proprietário, Rodrigo Kras Borges, 33 anos, é um bar LGBTQIA+ aberto “a todas as pessoas livres de preconceito”. Boa parte dos clientes são mulheres heterossexuais, que encontram ali um “lugar acolhedor e seguro” para se divertir com as amigas. A policial militar Fabíola Leão, 35 anos, conheceu o espaço em abril.
— Parece um espaço muito feliz, a liberdade transparece aqui.
Causando alvoroço nos clientes, Cassandra entra pela porta da frente vai até o pequeno camarim junto à cozinha do bar. Pede um gin tônica para o “chefinho”, como chama Rodrigo. Mesmo depois de tanto tempo de palco, ela jura que ainda sente um frio na barriga nessa hora.
Mas nervosa mesmo tinha ficado na semana anterior, quando os sogros foram assistir ao show. Eles estão na casa dos 70 anos, aposentados, e acolheram o Júnior muito bem na família, conta. Mas não a conheciam ainda de drag queen.
Parada na porta da entrada, perguntou para o segurança: “será que eles vão gostar de mim?”.
— Nessa hora bate todo o medo de rejeição. Vem o Júnior que apanhava na escola.
Logo retoma o olhar afrontoso e o carão, e Cassandra fez um grande show. Com a arte drag, quer deixar um trilho de glitter, quer provocar risadas e ser um “embaixador da alegria”. Mas também é uma forma de explorar sua liberdade e lutar por respeito.
Comemora que hoje existem artistas brasileiras disseminando a cultura drag na TV, como Pabllo Vittar e Gloria Groove, mas ressalta que o que se faz nos palcos de bares e casas noturnas da cidade é insubstituível.
— É importante o trabalho cênico de estar na frente de uma plateia, de ver como ela reage. Às vezes, se percebe um olhar de desgosto, descontentamento, e a gente pode vir com uma fala para quebrar com isso, para convidar a pessoa a enxergar de outra forma.
É nessa hora que Rodrigo entra no camarim e pergunta se Cassandra está pronta. Nos minutos seguintes, ela fica sozinha:
— Preciso me concentrar, fazer minha oração, bater a peruca e o saltinho três vezes para entrar no palco.
As luzes do bar se apagam e um refletor branco acha Cassandra no final do corredor. Começa a tocar Girls Just Wanna Have Fun, de Cindy Lauper. A drag queen marcha em direção ao palco, atira uma bandeira com as cores do arco-íris e ouve os gritos histéricos do público. “Eu quero ser aquela que caminha no Sol”, diz a letra, em inglês. “Garotas, elas querem se divertir”.