É quinta-feira, feriado de Tiradentes. Na Vila Mapa, o movimento é tranquilo. A calmaria só é irrompida por música. Pelas ruas da comunidade do bairro Lomba do Pinheiro, na zona leste de Porto Alegre, ecoam vibrações sonoras das mais variadas possíveis, de Ivan Lins aos Beatles. Tudo sob o instrumental afinado dos integrantes da Orquestra Villa-Lobos (OVL).
No pátio da escola municipal que leva o mesmo nome do grupo, Cecília Rheingantz Silveira, 61 anos, rege os músicos, que dominam teclado, violões, violas, violinos, violoncelos e flautas doces, entre outros instrumentos.
Para quem mora na Vila Mapa, virou rotina ter uma orquestra como vizinha. Ainda assim, sempre chama atenção de quem passa diante da escola. Um ou outro para, olha por entre as frestas do cercamento, tira uma foto, grava um vídeo.
E é assim há 30 anos, desde que Cecília, professora de Música concursada da rede pública municipal, iniciou um projeto com 14 alunos que iam à escola no turno inverso para aprender a tocar flauta doce. Os 14 foram se multiplicando, assim como o interesse dos estudantes. Do pequeno Clube de Flauta Doce Villa-Lobos, veio a Orquestra de Flautas Doces Villa-Lobos.
Perto dos anos 2000, com mais instrumentos entrando na conversa, a Orquestra Villa-Lobos tomou forma. Os 14 iniciais viraram mais de 300, atendidos mensalmente na escola e em outras instituições conveniadas pelo Centro de Promoção da Criança e do Adolescente São Francisco de Assis, organização da sociedade civil que mantém a parceria da OVL com a Secretaria Municipal de Educação (Smed). Como o projeto cresceu para bem além dos muros da escola, precisou (e sempre precisa) do apoio do poder público.
— Hoje temos 23 educadores contratados por meio do Centro São Francisco. Eles se dividem entre 100 turmas, que são os horários de aula específicos de cada instrumento. Algumas são individuais, e temos, no máximo, 10 alunos por turma — explica Cecília.
Flauta doce foi o carro-chefe
Antes de chegar à orquestra, os pequenos trilham um caminho. O coração da OVL está na escola municipal da Vila Mapa. Ali é que boa parte dos monitores e integrantes do projeto seguem. Dos 23 educadores contratados, mais da metade é de ex-alunos da escola e integrantes da OVL. São esses monitores que atendem pequenos de seis anos em diante.
Quem entra na escola já pode participar das oficinas. O carro-chefe ainda é a flauta doce, a porta de entrada. Mas, outros caminhos vão sendo seguidos pelos membros conforme avançam nas turmas. Além da orquestra principal, o projeto tem grupo de flautas infantil, de percussão, choro e vocal.
Cecília recorda como viu a ideia tomando forma de orquestra a partir da virada para os anos 2000. Com a seleção do projeto para programas de financiamento privados e também a parceria com a Smed, a responsabilidade foi aumentando. Em 2002, veio a gravação do primeiro CD (Trenzinho Caipira) e o aumento no número de concertos. Hoje, o grupo ultrapassa a marca de 1,2 mil concertos no Brasil e no Exterior para mais 350 mil pessoas. Uma carreira muito premiada.
Ao longo das três décadas, a iniciativa recebeu 18 premiações nas áreas da Educação, Música e Direitos Humanos, em níveis local e nacional. O grande destaque são os Prêmios Açorianos de Melhor Espetáculo de Música nas edições de 2019 e 2020, com Paz & Amor e Afrika, respectivamente.
"No toque da flauta, a revolução"
Enquanto reunia os alunos para as oficinas na escola Heitor Villa-Lobos, Cecília costumava cruzar caminho com outro aluno, Cristiano de Oliveira Ferreira, 33 anos. Também envolvido com arte desde novo, o guri mantinha um grupo de dança no colégio, focado em break dance. Mas sua raiz sempre esteve no rap, que ele conta acompanhar desde os nove anos. Nas idas e vindas da vida, Cristiano virou Preto X, nome artístico pelo qual é reconhecido.
Antes disso, porém, passou por um longo e dolorido caminho de envolvimento com drogas, principalmente, maconha e crack. Em 2008, Cecília se preparava para gravar o segundo CD da OVL, batizado de Olhos Coloridos. Surgiu a ideia de gravar a oração de São Francisco de Assis, mas ela queria a orquestra e algum artista da comunidade na interpretação. Então, lembrou de Preto X.
— Quando ela me convidou, eu tinha problemas com drogas, mas ainda estava numa fase mais inicial. Lembro que, quando chegou o dia de gravar, eu já estava numa situação bem mais delicada. Ainda assim, ela me achou e me levou para a gravação — recorda Preto X.
A turma foi para a casa do artista Hique Gomez, onde gravaram no estúdio dele. Do dia, Preto X recorda que “foi mudo e voltou calado”:
— Só abri a boca para gravar a música. Mas, aquilo ficou marcado em mim. Porque a Cecília nunca me viu como alguém que era drogado ou coisa assim, ele sempre me tratou como artista.
Em 2009, Cristiano procurou ajuda e internou-se num centro de recuperação para dependentes químicos. Saiu de lá no início de 2010 e, desde então, está livre das drogas. Consolidou a carreira como rapper e, em 2020, foi procurado novamente por Cecília. O projeto era gravar um clipe com uma música autoral.
No ano passado, a OVL foi contemplada numa seleção do Relief Fund for Organizations in Culture and Education. É um fundo que visa reduzir os impactos da pandemia de covid-19 em projetos culturais e de educação. A iniciativa é do Ministério das Relações Exteriores da Alemanha e do Goethe-Institut.
Foram agraciados 141 projetos em 75 países da América do Sul, África e Ásia. Com os 22,7 mil euros (cerca de R$ 140 mil) distribuídos, foi possível fazer melhorias nas instalações da orquestra, adquirir materiais, distribuir bolsas de estudo e, enfim, tirar a produção do clipe do papel.
— Mandei para a Cecília várias letras que tinha escrito. Ela gostou de uma que tinha feito como sample em cima da música Abre Alas, do Ivan Lins. Mas a letra ainda não estava completa — recorda Preto X.
Homenagem para Cecília e orquestra
No trecho que Cecília gostou, o artista homenageia o pai, carnavalesco convicto, falecido em 2014. E também fala de questões raciais e da desigualdade social. Para a segunda parte, Preto X resolveu homenagear Cecília e também a orquestra. Daí vem trechos de Abre Alas como “alguém salva uma vida com uma canção / no toque da flauta, a revolução / hoje a molecada tá na missão / fazer faculdade e graduação”. A letra traduz bem o impacto da OVL na Lomba do Pinheiro.
Dos monitores que hoje trabalham nas oficinas ou integram a orquestra, quatro se formaram e cinco cursam a faculdade de Música. Outros tantos se preparam para o ingresso no ensino superior, conta Cecília. E centenas de outros, mesmo sem seguir na área musical como profissão, carregam a orquestra no coração como o melhor período de suas vidas.
— Sempre disse para a Cecília que tinha uma dívida com o trabalho gigante que ela faz aqui. E essa música foi uma maneira de retornar o que ela e a orquestra fizeram na minha vida e na de tantas outras pessoas — agradece Preto X.
No concerto de aniversário dos 30 anos, Preto X é um dos 10 cantores convidados que subirão ao palco para se apresentar junto à OVL. Ainda vão participar Alvaro RosaCosta, Ana Althoff, Beto Chedid, Danielle Costa, Dudu Sperb, Geyson William, Marcelo Delacroix, Paola Kirst e Stephanie Soeiro.
Atravessando gerações e transformando vidas
Uma das grandes marcas da OVL é sua história se consolidando a partir de quem está ali há muito tempo. É o caso do segurança Vanderson Silveira, 32 anos, e de sua filha, Eduarda Silveira, 13 anos. Moradores da Lomba do Pinheiro, eles têm a OVL como parte da vida.
Enquanto estudante da escola Heitor Villa-Lobos, Vanderson foi integrante das oficinas entre 1999 e 2007. Vindo de uma família de músicos, ele aproveitou as oficinas para dominar mais um instrumento: a flauta doce. Mas logo fez parte do grupo que incentivou a entrada de novos instrumentos nas oficinas, como o violão, que domina com maestria.
— Acho muito legal ter feito parte do grupo que iniciou a ampliação das oficinas, com novos instrumentos entrando nos concertos da orquestra — recorda Vanderson.
Ao completar 18 anos, Vanderson foi chamado para o serviço militar obrigatório e ainda descobriu que ia ser pai de Eduarda. Os dois fatos lhe afastaram da música. Mas, logo que a filha entrou na escola, o segurança estimulou a entrada dela na OVL.
— Meu pai sempre falava muito do projeto. E, como somos uma família que gosta muito de música, eu também me interessei — conta Eduarda.
Chegando ao quinto ano como integrante das oficinas, a guria já está nas turmas preparatórias de flauta doce. É a última etapa antes de entrar na orquestra.
Primeira oportunidade de emprego
Para Eriadny Borba, 26 anos, a OVL foi também sua primeira oportunidade de trabalho. Ela estava no time quando as primeiras parcerias permitiram a contratação de educadores.
Eriadny foi uma das convidadas para passar adiante o domínio sobre instrumentos. Na época do convite, tinha 17 anos, engravidou e achou que perderia a oportunidade, mas lembra que Cecília a estimulou a seguir trabalhando. E o trabalho como monitora aumentou seu interesse pelo ramo. Em 2018, entrou na faculdade de Música. Agora, está formada. Além da OVL, ela dá aulas em outras duas instituições.
Quatro irmãos de Eriadny fizeram ou fazem parte do projeto. Um deles formou-se pianista pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
— As oportunidades que a orquestra nos deu, até de viajar de avião para conhecer outros países, são coisas que quem mora em comunidades nunca sonha — diz Eriadny.
Aos 18 anos, Nathan da Luz também começa a trilhar esse caminho. Membro do projeto há 10 anos — oito deles tocando na orquestra, ele foi contrato como educador. Agora, está focado no ensino da viola, instrumento parecido com violino:
— Estamos eufóricos para o concerto de aniversário. Será o primeiro grande evento depois da pandemia.
Concerto de aniversário
- Na próxima quinta-feira, dia 28, a Orquestra Villa-Lobos se apresenta no Theatro São Pedro.
- O concerto fará uma retrospectiva pelas 30 anos do projeto, com a participação de 10 cantores convidados.
- Os ingressos vão de R$ 15 a R$ 100 e podem ser adquiridos no site da Sympla.
- O concerto se inicia às 21h. O Theatro São Pedro fica na Praça Marechal Deodoro, s/n, no Centro Histórico de Porto Alegre.