Por Cecília Rheingantz Silveira
Regente, idealizadora e coordenadora da Orquestra Villa-Lobos
A Orquestra Villa-Lobos é um programa de educação musical desenvolvido na Escola Municipal de Ensino Fundamental Heitor Villa Lobos, periferia de Porto Alegre. Tem por objetivo proporcionar a crianças e jovens da comunidade o acesso ao conhecimento musical e vivências artísticas e socializadoras. Alguns poderão ser músicos ou ter sua trajetória ligada à música. Mas todos saem do projeto cidadãos.
A proposta iniciou-se em 1992, quando eu ingressei como professora de música da prefeitura de Porto Alegre e fui designada a trabalhar na escola que traz o nome do maior músico brasileiro e pioneiro no ensino de música no Brasil, Heitor Villa-Lobos. Cheguei para trabalhar na Vila Mapa cheia de expectativa. Dar aula na rede municipal foi uma escolha.
Logo percebi a musicalidade daquelas crianças e do quanto a música poderia ser um elemento diferencial em suas vidas. Iniciei com 14 alunos dando aulas de flauta doce no contraturno escolar. A atividade logo interessou a mais alunos, os mais antigos passaram a ensinar aos mais novos, e outros educadores se juntaram. A iniciativa ultrapassou os muros da escola, se ampliou por meio de parcerias e se transformou em um programa sociomusical fundamentado em educação, arte e inclusão social.
Participar da orquestra se tornou um status e, indiretamente, uma alternativa para não se envolver com o tráfico. Há muitos anos, chegando à escola, fui abordada na calçada por uma senhora que me disse:
– Professora, obrigada! Hoje, pela primeira vez, a Vila Mapa é capa do Diário Gaúcho por uma coisa boa e não com notícia policial!
Aquilo me mostrou a real dimensão do que a orquestra representava. Para as famílias, orgulho e projeção de futuro melhor para seus filhos. Para os alunos, a possibilidade de descobrir lindezas dentro de si, ter autoconfiança, ser valorizado, aplaudido (ah, como é importante!) e ampliar visões de mundo.
O exemplo mais emblemático é o de Vladimir Soares, menino tímido que ingressou na orquestra aos 11 anos. A música era a sua forma de comunicação. E a escola pública, onde estudava, lhe apresentou a esse universo. De uma inteligência musical incomum, o Vladimir me motivava como educadora. As dificuldades pessoais não o impediram de seguir na música e a trilhar uma caminhada de sucessos: venceu quatro concursos de jovens solistas no Estado, se formou na UFRGS e ganhou o mundo!
Hoje, aos 36 anos, Vladimir tem dois mestrados em música pela Universidade de Stuttgart (Alemanha), onde atua há oito anos como solista e professor, sendo considerado pela crítica local como o “Paganini da Flauta Doce”.
Muitas outras lindas histórias foram escritas a partir da oportunidade de fazer música na escola. Outros quatro jovens da orquestra também se formaram em música e, atualmente, cinco cursam a faculdade de música e outros tantos se preparam para o ingresso no ensino superior. E centenas de outros, mesmo sem seguir na música como profissão, carregam a orquestra no coração, como o melhor período de suas vidas.
A Orquestra Villa-Lobos se tornou referência na educação musical no país e na América Latina. A partir dos anos 2000, por meio de financiamentos privados e convênio específico da Secretaria de Educação de Porto Alegre com o Centro de Promoção da Criança e do Adolescente São Francisco de Assis, nosso parceiro desde 2006, foram implementadas as oficinas de música com aulas de canto-coral, cavaquinho, contrabaixo elétrico, flauta doce, gaita ponto, percussão, piano, prática de orquestra, sapateado americano, teatro, teoria e percepção, viola, violão, violino e violoncelo. Desde então, o programa atende, em média, a cada mês, 300 alunos, gratuitamente, em quatro locais da Lomba do Pinheiro.
A pandemia nos trouxe não apenas o desafio das aulas online, sem ensaios e concertos, mas a dura realidade de perder o aporte financeiro da mantenedora. Há 19 meses, sobrevivemos por meio de financiamento coletivo e de apoio individual, aguardando a retomada do convênio. Atualmente, a equipe é constituída por 20 educadores, sendo 13 deles formados na orquestra, e atende, em média, 140 alunos em aulas remotas.
O grupo ultrapassou a marca de 1,2 mil concertos no Brasil e no Exterior para mais 350 mil pessoas. Junto com o aporte do poder público, é o que mais nos faz falta. Mesmo nestes tempos difíceis, em que se faz tão importante a escuta, a empatia, o estar presente mesmo distante, renovo a energia inspirada no entusiasmo da professora recém-chegada na escola da Vila Mapa, cheia de expectativa, há quase três décadas.