Após dois anos de devoção enclausurada em função da pandemia, os porto-alegrenses voltaram às ruas nesta sexta-feira (15) para celebrar um dos mais tradicionais eventos religiosos do Estado. Por duas horas, uma multidão de fiéis acompanhou a encenação da Paixão de Cristo no Morro da Cruz, na zona leste da Capital. Chorando, rezando e pagando penitências, centenas de pessoas palmilharam o 1,5 quilômetro que separa a Igreja São José do Murialdo do cume do morro.
— Nossa, eu senti muita falta da procissão. Fiquei rezando em casa todo esse tempo, mas estar aqui, ver Jesus sofrendo por nós, reforça a nossa fé — afirma Dalva Soares, 74 anos, que reuniu as amigas numa esquina do bairro São José para ver a celebração.
Este ano, o diretor Camilo de Lélis mudou a estrutura do espetáculo. Ele retirou o julgamento de Cristo, antes encenado diante da igreja que antecedia a caminhada, partindo direto para a via crucis, agora protagonizada por 27 moradores da comunidade. A cada 33 metros, eles se revezavam carregando a cruz de madeira.
— Esse protagonismo tem que passar para o povo — justifica Camilo, titular da Coordenadoria de Descentralização da Cultura da prefeitura da Capital.
Intérprete de Cristo há 40 anos, Aldacir Oliboni saiu do santuário carregando a cruz, mas logo a repassou para o padre Severino Lisboa cumprir o primeiro trajeto da via-sacra. Aos 64 anos, Oliboni espera que a retomada do espetáculo sirva para a população refletir sobre a mensagem de Cristo, sobretudo em tempos de guerra e após dois anos de pandemia.
— É um momento especial, depois de tudo que passamos nos últimos tempos. Voltar a carregar a cruz mexe muito comigo, e acredito que mexerá também com todo mundo, pois a procissão é uma oportunidade de agradecermos a Deus por termos sobrevivido à covid e rezarmos por quem se foi — afirma.
Acompanhado da primeira-dama Valéria Leopoldino, o prefeito Sebastião Melo acompanhou toda a cerimônia. Pouco antes do início do espetáculo, fiéis lotaram a igreja para a missa. Em sua homilia, o padre Severino citou a inflação, a miséria e o desemprego como os desafios cotidianos impostos à população.
— Todo nós carregamos a cruz na nossa vida. Por isso, este ano a cruz será carregada por nós, pelo povo, dando continuidade à saga de Cristo — afirmou.
Na subida do morro, três cenas da via crucis foram dramatizadas. Primeiro, Jesus encontra a mãe, Maria. Depois, tem o rosto limpo por Verônica de Jerusalém, que exibe ao povo o pano com a face de Cristo estampada em sangue. Por último, o lamento das suplicantes, que este ano choraram pelas vítimas da covid-19.
No fim do trajeto, a chegada de Jesus foi ao som da orquestra Camerata L’Estro Armonico. Diferentemente de outros anos, desta vez não houve crucificação. Após o Arcanjo Miguel derrotar a Morte numa luta celebrada pelo público que lotava a frente do palco, Jesus – novamente interpretado por Oliboni – ressuscitou no alto do morro. Erguido aos céus por um elevador, ele soltou uma pomba branca e rezou pelos fiéis. O espetáculo culminou com o espocar de fogos de artifício e balões brancos e vermelhos jogados ao ar. Duas faixas resumiam o espírito da celebração, com a frase “Jesus é do povo”.