O carrinho do Churros del Uruguay voltou à esquina da Avenida Cristóvão Colombo com a Rua Doutor Timóteo, no bairro Floresta, em Porto Alegre, depois de dois meses. Mas não é Milton Hernandez Burci, 80 anos, que tem recebido os clientes com seu jeito gentil e alguma piada em portunhol — mantinha o sotaque mais de cinco décadas depois de vir de Montevidéu para a capital gaúcha. Quem faz o churros agora é o caçula dele, como uma forma de honrar a memória do pai, que faleceu em março de covid-19.
"Por amor", o comissário de bordo Ricardo Jesus Hernandez, 40 anos, está aproveitando as férias para dar continuidade ao trabalho de Milton. Recebe clientes comovidos, que querem provar mais uma vez a receita do uruguaio e relembrar histórias. Milton trabalhou por cerca de 40 anos na Redenção, além de levar a iguaria para a frente do Colégio Rosário e a praia de Tramandaí.
Ele esteve uma década parado e, em razão da repercussão de uma reportagem sobre ele na ZH em 2015, construiu um carrinho novo no seu apartamento da Avenida Cristóvão Colombo e o levou para rua. Foi um sucesso: passou a vender uns 300 churros por dia e ganhou um propósito de novo.
— Eu rejuvenesci. Me sinto mais ativo — disse em uma segunda entrevista um Milton orgulhoso, estufando o peito por trás do uniforme branco de cozinheiro que tinha comprado para a nova fase da vida.
Também há quem ainda não sabe da morte do seu Milton, e daí Ricardo precisa dar a má notícia. A estudante Daniela Coutinho, 24 anos, e a mãe Eliane, 66, perguntaram logo “onde está aquele senhor querido”.
— Ele já fazia parte deste lugar. É muito triste saber disso — lamenta Daniele.
O vendedor Almir Ricardo Novaes, 50 anos, que comprava churros ali há anos, também se surpreendeu com a notícia.
— Eu não conhecia a história deles, mas me chamava atenção que era uma daquelas pessoas que faz seu trabalho muito bem feito, dava para ver que não era um sacrifício para ele estar ali — diz.
Sacrifício para Milton era ficar em casa, o que gerou algumas brigas com a família. Os filhos insistiam para que ele se resguardasse durante a pandemia de covid-19, mas Milton quis seguir vendendo churros. A morte foi muito rápida. Ele começou com os sintomas de coronavírus no final de fevereiro, chegou a ser intubado na UTI do Hospital Divina Providência e morreu no dia 10 de março.
Ricardo segue cobrando o mesmo preço que Milton colocara há cinco anos no churros recheado com doce de leite, creme ou Nutella: R$ 3,00, ou dois por R$ 5,00 — a inflação não chegou na esquina da Cristóvão com a Doutor Timótio. Era um hobby para o pai, justifica, e segue não sendo um negócio por dinheiro.
Faz parte do processo de luto do filho, que se emociona todos os dias. Especialmente na hora de preparar a massa. Esse momento lhe transporta para o passado, lembra do pai misturando os ingredientes enquanto fazia outras coisas — “era hiperativo”, segundo Ricardo. E gostava de cozinhar enquanto ouvia notícias do seu Grêmio pelo rádio.
O carrinho que Ricardo usa é o que foi projetado, soldado e construído por Milton há cinco anos. A receita do churros, aprendeu com o pai também — e um dos segredos está em fazer a massa mais fininha, o que deixa o doce mais crocante e sequinho e dá lugar a mais recheio.
Ele pretende atender de segunda a sábado, das 13h30m às 17h30min, até 8 de junho, quando acabam suas férias. Depois, deve tirar o carrinho do depósito nos dias de folga — vai divulgar quando na página do Facebook.
Ricardo só lamenta que não pode abraçar os clientes, em razão da pandemia. E não deixa a repórter ir embora sem ver um desenho que uma freguesa lhe deu, do pai empurrando seu carrinho de churros sobre nuvens e a inscrição “o céu ficou mais doce”.
O corpo de Milton foi cremado. Ricardo quer seguir a vontade do pai e espalhar suas cinzas na Arena do Grêmio.