Não bastasse todo mal e um sem número de incômodos que a pandemia do coronavírus impôs neste ano, a chegada do calor parece trazer mais um desafio. Trata-se da refrigeração em veículos de transporte público. Em Porto Alegre, desde 2017, sempre que a temperatura ultrapasse os 24ºC, ônibus com ar-condicionado deveriam acionar o equipamento. Entretanto, com a pandemia, essa obrigação foi suspensa.
Por isso, nesta quarta-feira (25), por exemplo, mesmo com uma máxima chegou aos 37,5ºC na Capital, o máximo que os passageiros embarcados em ônibus equipados com a refrigeração puderam fazer foi manter a janelas abertas e torcer para o vento entrar.
A última determinação sobre o tema foi publicada em junho, quando a prefeitura atualizou o decreto de calamidade pública causada pela pandemia. No texto, na seção referente ao transporte e a mobilidade urbana, o município definiu regras para "o transporte coletivo urbano, o transporte metropolitano, o transporte privado, o transporte seletivo por lotação, transporte individual público ou privado de passageiros".
Em parágrafo único, ficou decretado que "para manter o ambiente arejado, o transporte deverá circular com janelas e alçapões de teto abertos, e ar-condicionado desligado".
Usuários
Para quem precisa andar diariamente nos ônibus e lidar com a aglomeração, o adicional do calor deixa a rotina ainda mais sofrida. No final da manhã de ontem, a reportagem circulou pelo Terminal Parobé, no Centro Histórico. Para os usuários que embarcavam em carros com ar-condicionado, ver o equipamento desligado gerava um misto de incômodo com compreensão.
— A gente sabe que nessa época é calor e gente amontoada nos ônibus. O ar-condicionado alivia um pouco, quando a gente achava um veículo equipado. Mas, com essa pandemia, fica complicado mesmo, tem que deixar a janela aberta. Podiam ao menos tentar deixar menos lotado, para que não ficasse tão calor — reclama o auxiliar de produção Jorge Wladimir Andrade, 24 anos.
Jorge mora em Gravataí, mas trabalha em Porto Alegre, na Zona Norte. Se desloca diariamente entre as duas cidades e utiliza o transporte público para isso. Situação parecida com estudante de enfermagem Enelise Silveira, 35 anos, que mora na Capital, mas estuda em Canoas, na Região Metropolitana.
- O transporte é péssimo, agora, então, ficou pior. E com esse calor, o ar-condicionado está fazendo muita falta - diz Enelise.
Sistema
O autônomo Ravel Tomesz, 29 anos, diz que a sensação é a de pagar por um serviço e não recebê-lo da maneira correta. Apesar da pandemia, Ravel acredita que o sistema já era defasado em relação à refrigeração nos carros antes disso.
— Ouvimos promessas e mais promessas de que os ônibus seriam novos, com ar-condicionado, que a licitação melhoraria tudo. A única coisa que acontece é a passagem subir todo ano. Teve acréscimo para cobrar pelo ar-condicionado e agora nem ligam mais o equipamento — aponta Ravel.
Como os decretos de regulamentação ainda seguem os mesmos, não há previsão de mudança por parte da administração pública. Por isso, para lidar com o calor, por enquanto, só será possível deixar as janelas dos coletivos abertas. E como o decreto também se estende para o transporte individual, os carros de aplicativo devem manter o mesmo padrão, janelas abertas e refrigeração desligada.
Ônibus mais seguro, diz EPTC
Conforme a Empresa Pública de Transporte e Circulação (EPTC), o objetivo dos decretos é deixar "a saúde dos usuários em primeiro lugar". Por isso, "manter as janelas abertas torna o ônibus um local mais seguro". A companhia ainda diz que há estudos que apontam para isso. E a EPTC garante que tem fiscalizado regularmente o cumprimento da legislação tanto no transporte coletivo, quanto nas modalidades individual e de lotações.
Conforme dados repassados à reportagem, da metade de março até a semana passado, já foram realizadas 44.933 abordagens no transporte coletivo relacionadas à pandemia. Destas, 1.599 resultaram em autuações, principalmente, por falta de viagens — 752 casos — e excesso de passageiros — 617 casos.
A Associação dos Transportadores de Passageiros (ATP) da Capital, defende que "o ambiente arejado tem sido defendido como medida importante de prevenção por especialistas da área da saúde", por isso, acha difícil que haja uma mudança nesse tema durante a pandemia. Em relação à lotação dos carros, a ATP diz que segue o decreto em vigor, onde, nos ônibus comuns, podem haver até 15 pessoas em pé e nos articulados até 20 pessoas em pé".
Medida é considerada correta
De acordo com o infectologista André Luiz Machado, do Grupo Hospital Conceição (GHC), as medidas adotadas pela prefeitura no transporte, seja coletivo ou individual, são corretas. Segundo ele, os sistemas de refrigeração de carros e ônibus não têm a mesma capacidade de renovação do ar do que em sistemas com ar-condicionado central, como shoppings, por exemplo.
— Sabe-se que este coronavírus pode ser transmitido em situações de aerolização, por exemplo, alguém tossir ou espirrar e se espalhar no ar. Se o ambiente não está arejado o suficiente, pode gerar infecção em outras pessoas — aponta André.
O médico infectologista Rodrigo Pires dos Santos, coordenador da comissão de controle de infecção do Hospital de Clínicas de Porto Alegre (HCPA), explica que as janelas abertas são uma barreira adicional contra o vírus. Cada ação, individualmente, pode não ser 100% eficaz. Por isso, o combate à transmissão do coronavírus se dá um por um conjunto de medidas: a máscara, a higienização das mãos, o distanciamento social, entre outros, como manter ambientes arejados.
— No ônibus, se tem a dificuldade de não conseguirmos manter o distanciamento social, então, já é uma barreira a menos. Se fechar a janela e ligar o ar-condicionado, o ar ficará muito mais carregado de partículas, que podem ser do vírus e que podem não ser filtradas pelas máscaras. Então, não é uma firula, manter as janelas abertas é essencial para renovar o ar nestes espaços como o do ônibus — diz Rodrigo.