Em uma reportagem publicada em Zero Hora em julho de 1990, a jornalista Eliane Brum descreveu o Ao Belchior, na Rua Marechal Floriano Peixoto, como o lugar onde era “possível encontrar o impossível”. O aparente exagero se aproximava da realidade. À época, o então sexagenário antiquário vendia de tudo: de veneno para barata, ratos, formigas e lesmas a vidros de lampião, defumações e “chama dinheiro”, de coldres de revólver a soda cáustica. Parte dos produtos era divulgada em quadros riscados com giz branco posicionados no chão, à entrada da loja.
Aos 90 anos completados em 2020, a gama de atuação do estabelecimento é bem mais restrita. Há mais de duas décadas, funciona exclusivamente nos moldes de um antiquário, com velharias das mais diversas, mas principalmente louças, talheres, bonecas e câmeras fotográficas de outros tempos, além de um sem número de objetos de pouca ou nenhuma utilidade na vida 2.0.
Os artefatos se amontoam em um minúsculo imóvel em frente à casa onde funcionou dos anos 1980 até o começo dos anos 2000. Na mesma via, há outros antiquários, maiores e até mais bonitos. Com uma diferença. Mais do que comercializar objetos históricos, o Ao Belchior é, ele próprio, parte da história da cidade.
Mais antigo brique de Porto Alegre, foi inaugurado em 1930, na Rua dos Andradas — a mudança para a Marechal Floriano só ocorreu bem mais tarde. O primeiro imóvel, ao lado do antigo Cine Cacique, abrigava, junto à loja, uma casa de penhores e uma lavanderia. Seu fundador, o imigrante português Joaquim Cunha, comandou o local até pouco antes de morrer, aos cem anos e 21 dias, em 1995.
Sem filhos, o velho português deixou a casa para uma antiga funcionária, que esteve no Ao Belchior até seus últimos dias. Ione Tellitu morreu em 2012, e o brique seguiu com Carmen Baldassari, atual proprietária.
Ex-funcionária da loja, onde começou a trabalhar em 1977, aos 17 anos, Carmen também é parte da alma do local, e a principal guardiã da memória do Ao Belchior e de seu proprietário. Preserva parte da mobília e de objetos do tempo da Rua da Praia, além de pertences do comerciante português. Em uma pasta com plásticos, guarda mais de uma dúzia de reportagens sobre o brique publicadas em diferentes jornais ao longo das últimas décadas.
Para “estimular a conversa”, não coloca preço nos objetos, cuidadosamente posicionados na sala estreita onde o antiquário funciona —a tática é herança dos tempos do seu Joaquim. Ao observar o cliente interagindo com um produto, aproxima-se e, não raro, pergunta: “sabe o que é isso?”. As negativas são a deixa para a simpática briqueira desandar a falar, discorrendo sobre a utilidade, o funcionamento e até mesmo o material de que são feitos.
— Eu adoro quando as pessoas respondem “não”, porque aí posso explicar. Me derreto quando o cliente diz que se sente bem aqui — confessa, com ar traquina.
Para o deleite de Carmen, a reportagem nunca tinha visto um castiçal de árvore de Natal (que lembra um grampo de cabelo e cabe na palma da mão) nem ouvido falar em galalite (material semelhante ao plástico, produzido com uma proteína do leite e utilizado na confecção de espátulas para abrir cartas e botões de futebol de mesa, entre outros). Tampouco tinha ideia de que o “Getulinho”, um mini-João Bobo em plástico de Getúlio Vargas, vendido como souvenir quando era presidente, é uma coqueluche entre colecionadores — até hoje, é dos objetos com "venda certa" na loja, onde é bom circular com cuidado. Qualquer movimento brusco pode levar uma delicada xícara ou uma assustadora boneca antiga ao chão.
Há também coisas que não estão à venda. Um retrato de Joaquim na juventude, sua ficha de naturalização, assinada por Getúlio Vargas, e uma miniatura de bonde da Carris, presente de um antigo funcionário da companhia, estão na lista de bugigangas que Carmen não negocia.
— São as mais raras para mim, porque tem valor emocional — explica.
Joaquim trabalhou até os 99 anos
Se muito do espírito de vendedora faz parte da personalidade de Carmen, que, durante a semana, atua como educadora social em um centro comunitário, outro tanto é inspirado em Joaquim, a quem define como “bom professor e patrão rígido”.
Nascido em Marmeleira do Botão, freguesia de Sousellas, o homem teve a vida atrelada ao comércio desde que desembarcou no Brasil em 1911, no Porto de Santos. Rumou para São Paulo, onde começou a trabalhar como funcionário em uma loja de produtos franceses.
A mudança para Porto Alegre só ocorreu 16 anos depois, de forma inusitada. Seduzido pelas imagens do Porto dos Casais que viu em cartões postais, resolveu conhecer a Capital após um período de férias em Montevidéu. Nunca mais foi embora.
Nos primeiros anos, viveu em uma pensão na Rua dos Andradas, onde começou um negócio de penhores — a primeira cliente, que empenhou uma sombrinha de seda, viria a se tornar sua esposa, em um casamento que logo acabou. Em pouco tempo, o lugar ficou pequeno para a quantidade de objetos que os endividados deixavam com o português, que resolveu colocá-los à venda.
O nome do negócio, Ao Belchior, quer dizer briqueiro em português de Portugal. Mas, desde o começo, a casa oferecia serviços diversos, desde empréstimos financeiros à venda de produtos novos e usados. Como também emprestava roupas e objetos para companhias de teatro, e seu tino para os negócios era irrefreável, abriu, junto ao brique, uma lavanderia.
A "loja que vendia de tudo", como era propagandeada por Joaquim, foi referência na Rua da Praia por 50 anos. Determinado a se aposentar, o português vendeu o prédio em 1980. O fim do Ao Belchior, no entanto, foi contestado pelo então prefeito Guilherme Sociais Villela, que, àquela altura, já via o negócio como parte da história da Capital.
— Ele (Joaquim) era muito amável. Era um idealista, e Porto Alegre carece de idealistas, no bom sentido. A loja dele se identificava com o passado e o presente da cidade, com o passado e o presente. Conversei com ele para que continuasse — conta o ex-prefeito, que se refere ao local como “Bélxior”.
Incentivado pelo então prefeito, Joaquim inaugurou a nova loja, na Rua Marechal Floriano. Já se aproximava dos 90 anos, mas estava longe de esmorecer. Em outra reportagem sobre o antiquário publicada em 1992, no caderno ZH Praia de Belas, a repórter Susana Vernieri observou: “nem os cabelos dissipam o ar de menino travesso” do comerciante, então com 97 anos. Só deixou oficialmente de trabalhar cerca de um ano antes de sua morte.
Leilão de objetos intrigou clientes
Além dos clientes comuns e dos colecionadores das mais diversas localidades, o Ao Belchior recebeu diversos visitantes ilustres ao longo das décadas. Carmen Miranda, Nelson Gonçalves e Texeirinha já estiveram por lá procurando bugigangas. Ione contava que Gal Costa comprou uma piteira preta em sua passagem pelo local.
O ponto na Marechal Floriano já estava mais para antiquário quando o velho português finalmente descansou. Também tinha recebido companhia na via, que começou a atrair outros briques (o local é hoje conhecido como Caminho dos Antiquários). Mas os planos para o negócio já eram outros, mais modestos do que nos tempos em que se podia achar o inimaginável nas prateleiras da casa.
Ione, que tinha um ofício paralelo, passou a abrir as portas apenas aos finais de semana. O imóvel que abrigava a loja foi vendido no começo dos anos 2000 (atualmente, abriga outro antiquário), e o brique passou por outros pontos do Centro Histórico até se estabelecer no número 721 da via, em frente ao prédio antigo.
Com a morte de Ione, em 2012, Carmen manteve o modelo de operação. Abre aos sábados, das 8h às 16h (mesmo horário em que ocorre a feira de antiguidades na via). Preserva, na fachada, uma placa antiga que identifica o local como “Antigo Bric da Rua da Praia”, com o nome do fundador.
Em 2019, parte do acervo de Joaquim que pertencia à família de Ione foi vendido em um leilão, levantando rumores sobre o fim da loja. Se depender de Carmen, no entanto, o legado do Ao Belchior e de Seu Joaquim estarão resguardados, pelo menos, até o fim dos seus dias.
— Esse lugar é tudo de bom. Vou ficar até eu ir para o céu, até quando eu puder. Faz parte da história de Porto Alegre.