O estranhamento é inevitável. À esquina das ruas Duque de Caxias e General João Manoel, no centro de Porto Alegre, uma dezena de carros populares estacionados dentro de um pátio residencial contrastam com um casarão de ares aristocráticos localizado no mesmo terreno. Uma faixa presa às grades imponentes anuncia o empreendimento que funciona no local há cerca de uma década.
— Se eu cobrasse para visitarem a casa, ganharia mais dinheiro do que com o estacionamento. Vem gente de faculdade, arquiteto, gente de fora... Até aquele Furtado (Jorge, diretor de cinema) já veio aqui querendo fazer filme, mas não deixaram — conta Sandro Vaz, 49 anos.
Morador do Centro Histórico e dono do estacionamento que ocupa a parte frontal e o antigo jardim do palacete, com um total de 60 vagas, Vaz cobiçou o local por meses antes de propor aos proprietários o aluguel do espaço. Ao passar pelo imóvel abandonado, lembra, enxergava apenas seu potencial externo, as áreas do pátio e do imenso quintal que circundavam o antigo casarão.
Tão logo abriu seu negócio, percebeu que o que mais despertava interesse nas pessoas era a casa, fechada desde meados da década de 1990, quando morreu o último morador. Não é para menos. Em meio aos prédios que se multiplicaram na vizinhança ao longo das décadas, a construção em estilo eclético chama atenção como um pedaço da história que, a duras penas, resiste no centro da cidade.
— A Duque de Caxias era a rua onde ficavam as elites tradicionais políticas no fim do século 19 e no começo do século 20. Depois, essa área foi subindo para a (Avenida) Independência e o Moinhos de Vento, e os imóveis foram demolidos. Os donos dessa casa fazem parte de uma das famílias tradicionais que fizeram fortuna nesse período — explica o professor do curso de História da PUCRS Charles Monteiro.
Residência de parte dos Chaves Barcellos, um dos sobrenomes mais conhecidos de Porto Alegre, o palacete foi a única das quatro suntuosas casas da parentela situadas no mesmo eixo (as quatro esquinas da Duque com a João Manoel) que se manteve intacta — duas delas deram lugar a prédios, enquanto uma foi demolida para a construção de outro estacionamento. Desde 2004, é considerada patrimônio histórico do município, motivo pelo qual não pode ser destruída.
Apesar da proteção simbólica, o aspecto é de abandono. Na parte externa, a pintura das paredes descasca. A lateral voltada para a Rua General João Manoel ostenta pichações. Parte das árvores que embelezavam o pátio e o quintal foram suprimidas anos atrás, para dar lugar aos carros.
Para piorar a situação do casarão, o imóvel virou alvo de uma guerra judicial entre herdeiros. Em fase de penhora, passará definitivamente às mãos de um bisneto de Antônio Chaves Barcellos, primeiro dono do palacete. O futuro proprietário diz que o aluguel do estacionamento tem sido investido na manutenção e na quitação de dívidas do imóvel e que tem intenção de restaurar o palacete quando o litígio se resolver.
"Era de uma imponência que emudecia a gente", lembra antigo frequentador
Frequentador do local em décadas passadas, o médico Fernando de Abreu e Silva lembra do casarão como um ambiente "alegre e festivo". Além do jardim, pelo menos duas salas eram utilizadas para receber os convidados — em uma delas, havia um piano de cauda que era tocado em algumas celebrações. Os cômodos tinham móveis importados da França e da Alemanha.
— Era uma imponência que emudecia a gente. Tinha muito objeto, muita porcelana e muito cristal. O jardim era muito cuidado, as janelas ficavam entreabertas, e a casa tinha cortinas bonitas. Era uma das mais bem mobiliadas de Porto Alegre... É com muita dor que vejo a decadência dela — recorda.
No local, eram realizados dos casamentos aos velórios da família, que tinha entre seus convivas figuras ilustres da política nacional. À época morador da Duque de Caxias, o ex-presidente Getúlio Vargas era frequentador assíduo — ele teria dado aos proprietários peixes para uma fonte de azulejos portugueses nos fundos do terreno. Em uma passagem pela Capital enquanto presidente, Eurico Gaspar Dutra também foi recebido na casa.
Desde a sua concepção, o palacete dos Chaves Barcellos foi a expressão arquitetônica do padrão de vida burguês do começo do século em Porto Alegre. Dona de comércios e imóveis, a família contratou o arquiteto mais conceituado da época para projetar o imóvel, que completa cem anos em 2019. Responsável por alguns dos prédios mais emblemáticos da cidade, como a Casa de Cultura Mario Quintana, o Santander Cultural, o Memorial do Rio Grande do Sul, o Banco Safra e o Edifício Ely, o alemão Theo Wiederspahn teve prédios tombados em pelo menos três países — além do Brasil, Alemanha e Uruguai consideraram patrimônio histórico construções projetadas por ele.
— Esse imóvel tem muitas características palacianas e germânicas, como um grande porão, onde havia todo um aparato de serviços. A família morava em cima. Toda a vida burguesa se caracteriza na distribuição interna do prédio, com salas de recepção e pé direito alto, um tratamento de volume requintado, externamente monumental — avalia Günter Weimer, especialista na obra do arquiteto alemão.
Zeladora é única moradora do imóvel
Acomodando mercadorias nos fundos de um mercadinho que funciona na diagonal do palacete, Ricardo dos Santos, 47 anos, estremece ao ser questionado sobre o imóvel vizinho ao seu trabalho.
— Aquela casa é muito sinistra. Uma vez, fui levar umas compras lá e ouvi uns barulhos de madeira rangendo... — diz o morador da zona leste da Capital, que atua no comércio do Centro há 17 anos.
Apesar do aspecto de mal assombrado conferido pela fachada descuidada, os rangidos que indicam movimentação no local são provocados por uma moradora de carne e osso, cheia de vida. Zeladora do imóvel desde o começo dos anos 2000, Maria Martins Machado, 55 anos, ocupa a parte térrea do casarão, onde vive sozinha desde a morte do marido, em 2013.
— Volta e meia, as pessoas me perguntam se não tem fantasma. Brinco que o fantasma sou eu — diverte-se.
A vida da única residente do palacete é a antítese da rotina badalada e luxuosa que marcou as primeiras décadas do imóvel. A mobília da sala, dois sofás, duas cadeiras e uma mesinha com TV, divide espaço com alguns móveis antigos em madeira escura que os proprietários trouxeram do Litoral anos atrás. Sobre a mesa redonda onde meia dúzia de pessoas comeriam, dezenas de porta-retratos a transportam para mais perto dos parentes, que vivem Uruguaiana.
A zeladora utiliza ainda dois quartos — o seu e o ex-dormitório do marido, atualmente de hóspedes —, um banheiro e a cozinha, cujo piso frio destoa do restante da casa, em ladrilho hidráulico. A umidade deteriorou parte do forro de alguns cômodos e os azulejos de um banheiro utilizado como área de serviço — onde se vê um antigo chuveiro enferrujado.
O amplo espaço não chega sequer à metade do tamanho do porão, área com mais de 200 metros quadrados que virou depósito de entulhos e documentos antigos da família proprietária. A parte de cima, à qual a reportagem não teve acesso, foi aos poucos desmantelada pelos herdeiros, que levaram embora os objetos de valor. GaúchaZH não teve autorização para fotografar a área interna.
Volta e meia, as pessoas me perguntam se não tem fantasma. Brinco que o fantasma sou eu
MARIA MARTINS MACHADO
Zeladora
A rotina de Maria é marcada pela tranquilidade. Costuma levantar cedo para abrir as portas e janelas da casa — as que dão para a rua mantêm fechadas para evitar olhares curiosos —, e receber os primeiros clientes do estacionamento.
Em quase duas décadas como moradora do palacete, afeiçoou-se tanto que, mesmo diante do mau estado, só consegue ver beleza nele: mantém uma foto do imóvel pendurada na parede da sala. Para a mulher que muito imaginou a vida nos tempos de glória do casarão, hoje é difícil, inclusive, projetar um futuro em que não esteja nele.
— Quando eles moravam, devia ser lindo, as festas, os saraus, os bailes... Acho que daria para fazer um restaurante, uma biblioteca, um café. Cabe tudo. Mas eu não quero ir embora. Amo essa casa. É como se eu fizesse parte dela — sorri.