Amarrar os sapatos nunca fez parte da rotina de seu Dodô, como é conhecido Salvador Rosa da Silva. O agricultor de 71 anos, morador da área rural de Porto Alegre, calça botas de borracha para percorrer os cerca de dois hectares da propriedade adquirida há mais de 40 anos. Da terra preta que embarra o calçado sai mais do que o sustento de casa - devido à pandemia de coronavírus, a família entrou em isolamento, e os legumes e hortaliças cultivados sem agrotóxicos deixaram de ser comercializados em feiras orgânicas da Capital, passando a compor sua mesa nas refeições.
– O pessoal pede pra gente voltar para a feira, mas eu não vou arriscar trazer o vírus para cá. Eu aqui, estou dando um presente para a minha vida. Ficar em casa, sem ter que passar tanto trabalho na feira. A vida é mais importante do que o dinheiro – define o homem com o rosto protegido por um escudo facial.
Localizado na estrada vicinal Luiz Corrêa da Silva, no extremo sul do bairro Lami, próximo ao limite com Viamão, o Sítio dos Herdeiros chama a atenção dos visitantes oriundos da zona urbana por causa do silêncio. Não há buzinas ou ronco de motores. Semáforos ou placas tampouco, em uma região onde referências são mais eficazes que os mapas controlados por aplicativo.
A calmaria é sucesso com os quatro netos, segundo a esposa de Dodô, Vera Lúcia Ferreira da Silva, 64 anos.
– Eles amam. Correm, brincam com os bichos, tem um ar limpo para respirar. Aqui a gente não troca por nada - diz.
A referência da mulher é repetida por seu Dodô.
– Não deixo isso nem por R$ 2 milhões, nem por R$ 4 milhões. O melhor que temos aqui é o silêncio. Eu sozinho capinando tenho tempo de conversar comigo. Às vezes eu até discuto comigo, fico pensando sobre algo que fiz - explica, complementando que na briga consigo, o resultado é "sempre um empate".
No local, os agricultores dizem seguir "o ciclo das plantas", colhendo, atualmente, as mais variadas culturas: mostarda, rúcula, ervilha torta, cenoura, nabo e agrião. Com a proximidade da primavera, melão, tomate cereja e hibisco entrarão no rol a serem semeados. Mesmo sem a venda do plantio, eles dizem se manter bem com boa parte do consumo retirado do próprio chão.
Com gansos, galinhas, pássaros e cães, a historia de dois gatos de destaca. "Meu", branco com manchas pretas, e "Teu", com a coloração exatamente inversa, são dois felinos adotados pela família há 15 anos. Os nomes nada comuns surgiram a partir da disputa para decidir quem ficaria com qual.
– Quando nasceram, as crianças brigaram para ficar com eles. Um dizia que o meu é mais bonito, outro dizia que o teu vai ficar comigo, e aí demos esses nomes - relembra Vera.
Mesmo trabalhando em empresas na área urbana, dois dos três filhos permaneceram no campo. Após construírem casas no vasto espaço verde, eles casaram e criam seus filhos como se não morassem na mesma Porto Alegre conhecida pela maioria da população. Contratada por uma rede do varejo, a filha mais velha vive atualmente em Guaíba, na Região Metropolitana.
O casal espera que os filhos mantenham a propriedade com o mesmo esmero dispensado. Ambos foram criados em regiões muito parecidas: Dodô no Canta Galo, área verde do bairro São José, em Viamão, e Vera em outra casa no próprio Lami. Do passado, eles se mostram pouco saudosistas.
– Era muito trabalho, né? Não tinha luz nem água encanada, tinha que buscar lá na praia - conta o homem, em referência ao balneário mais próximo, a mais de um quilômetro do sitio.
Na despedida, em entrevista à Rádio Gaúcha, o agricultor pediu para deixar um recado a sua comunicadora favorita: Kelly Matos.
– Ouvir a Kelly Matos de manhã me deixa com o espírito melhor. Essa risada gorda, que ocupa o espaço. Quero pedir que a Kelly não faça dieta da risada nunca – afirma o fã da jornalista.