Da noite para o dia, a pista de boliche foi esvaziada sem data para retornar. O professor de matemática se viu afastado dos alunos. As irmãs donas do brechó passaram a temer pela saúde da mãe (de grupo de risco) se saíssem para fazer entregas.
Os casos que chegaram até o projeto SOS-PME Rede de Assessoria Empresarial são boas medidas do quão diversos e críticos são os males que afetaram a saúde das pequenas e médias empresas a partir da chegada da covid-19.
Nascido como um projeto de extensão do curso de Administração da UFRGS, o SOS foi viabilizado como uma forma gratuita de ajudar pequenos empresários a segurarem as pontas e buscarem alternativas enquanto a pandemia durar. O número de empresas que já procuraram a universidade também remete a uma emergência lotada: foram 93 “pacientes”. E as analogias com a saúde vão além.
— A gente até pensou em chamar o projeto de UTI empresarial. Para participar, é preciso preencher um formulário em que perguntávamos o quanto de perdas de faturamento as empresas previam e quão grave elas consideravam o quadro da empresa. Priorizamos os atendimentos conforme a urgência. Mas descobrimos que o “não sei” era uma resposta tão preocupante quanto as demais — conta Daniela Brauner, uma das coordenadoras do projeto.
Nesse ponto, a UFRGS deparou com a forma muitas vezes amadora como os pequenos empreendedores se estabelecem no Brasil em termos de ferramentas de gestão. Ao se verem subitamente de portas fechadas, um grande número de microempresários não fazia ideia do seu estoque, do seu fluxo de caixa, dívidas, número de clientes e outros dados fundamentais para planejar uma retomada.
— A gente já sabia dessa precariedade, mas o que faz diferença numa crise é esse preparo. Para que se possa imediatamente estudar alternativas — declara Daniela.
Foi o caso de Luiza Teixeira, que dividia com a irmã, Ísis, a administração do Lua Bazar Brechó. Acostumadas a faturar participando de feiras pela cidade, elas tiveram acompanhamento para finalmente organizar um estoque, dividir tarefas e otimizar processos de entrega.
— Tínhamos medo de nos expor fazendo entregas, porque a minha irmã mora com a minha mãe, que é de grupo de risco. Cobrar frete encareceria o produto. Após a consultoria, fechamos com um entregador para fazer entregas das vendas por Instagram apenas uma vez por semana. Também combinamos, com quem desejar, entregas só depois da pandemia, já que ninguém está preocupado com roupa agora. São soluções até meio óbvias, mas precisa de alguém que te ajude a enxergar — conta Luiza.
Mais matrículas
Há mudanças que muitas vezes os empreendedores já haviam detectado como necessárias, mas a falta de tempo ou expertise fazia com que elas fossem adiadas. A pandemia fez delas questão de sobrevivência. No caso do professor de matemática Diego Matos de Andrades, por exemplo, ou ele investia no ensino a distância ou diria adeus aos alunos em preparação para vestibulares e Exame Nacional do Ensino Médio (Enem).
— No meu caso, a consultoria foi mais útil para tornar as aulas eficientes. Por exemplo: eu comecei fazendo aulas virtuais de duas horas, como fazia presencialmente. Eles me deram o toque de que, em EAD, teriam de ser mais curtas e mais focadas em esclarecer dúvidas. Outra dica foi disponibilizar uma aula experimental de graça. Para a minha surpresa, tive duas matrículas novas desde a pandemia — conta Diego, conhecido como o Professor Diegueira.
Novos valores
Conforme Daniela, os casos mais complicados são os das empresas que, subitamente, “não conseguem mais entregar a sua proposta de valor”. Uma escola de educação infantil ou um cinema, por exemplo. Não há como adaptar um tipo de serviço que não será prestado por um tempo. Foi o caso do Bowlerama, uma casa de boliche no bairro Santo Antônio com pegada anos 1950.
— Somos um lugar muito querido pelos nossos clientes. Mas todo faturamento do local se baseava em recebê-los bem, em realizar eventos e encontros em torno do boliche. Sabe-se lá quando isso vai ser retomado. Até tínhamos no local mesas para servir lanches, petiscos, mas quem conhecia o Bowlerama não relacionava a marca a comida — declara o proprietário do local, Thiago Araújo.
Nesse caso, a solução foi transformar o local em uma “dark kitchen”. Ou, como prefere Thiago, em uma "space kitchen": uma cozinha de portas fechadas para restaurantes que só existem para delivery. O auxílio da UFRGS veio para otimizar a ideia. Por exemplo: em vez de uma marca com diversos produtos, foi concebida uma marca própria para cada prato, otimizando a eficiência das buscas nos apps de comida. A primeira, o Tinys Burger, é uma hamburgueria, mas em breve o boliche dividirá espaço com outras seis marcas de pastel, churros, pizzas, empanadas, frango e xis.
Com cinco funcionários, o Bowlerama está todo voltado aos restaurantes virtuais. Porém, a ideia é que, no futuro, os dois negócios coexistam. O melhor aproveitamento da cozinha, segundo Thiago, deve se manter depois da pandemia.
— Esse é um ponto em comum entre quase todos os atendimentos: deverão herdar conhecimentos que vão continuar aproveitando nos seus negócios depois que isso tudo passar — avalia Daniela.
Esse aspecto se estende à própria UFRGS. Desde o início do SOS PME, mais de 40 negócios já “tiveram alta” e novas rodadas de atendimento estão em curso. A avaliação é tão positiva que será mantido após a pandemia, para auxiliar, além de pequenas empresas em dificuldades, a própria UFRGS a aplicar na vida real o que ensina nas salas de aula.
Confira a entrevista com a coordenadora do projeto, Daniela Brauner:
Como funciona
- O SOS PME é coordenado pela Escola de Administração e conta com apoio de unidades da UFRGS, do Cepa (Centro de Estudos e Pesquisa em Administração) e do Parque Científico e Tecnológico Zenit. Mas ele é aberto a voluntários. Profissionais e acadêmicos de todas as áreas que puderem se engajar são bem-vindos. Saiba como funciona:
- Empresários interessados devem acessar o site ufrgs.br/escoladeadministracao/sospme, preencher um formulário detalhado sobre a situação atual da empresa e aguardar pelo retorno. O projeto é aberto a empresas de todo Brasil
- Ao receber o pedido, o SOS PME faz uma avaliação preliminar do caso. São priorizados os mais urgentes, que ganham atenção de uma equipe de aproximadamente quatro pessoas. Esses grupos são multidisciplinares e compostos de voluntários como professores, alunos da graduação e pós-graduação e ex-alunos.
- Há um primeiro encontro, sempre de forma remota, entre os profissionais da UFRGS e o empresário. Nesse encontro, o próprio empreendedor descreve as principais dificuldades e as tentativas já realizadas de contorná-las. Como resultado, a equipe de atendimento reunirá pontos para a busca de alternativas.
- Em um segundo encontro remoto, chamado de cocriação, a empresa receberá as orientações levantadas pela consultoria da UFRGS. Aí se discutem quais alternativas são válidas e quais dicas podem ser aproveitadas.
- Por fim, os empresários fornecem o feedback do atendimento. Dependendo do caso e da vontade do empresário, são indicados outros serviços parceiros que podem auxiliar o empresário.