Maria Sirlei dos Santos se constrange com a poeira acumulada nas cadeiras de plástico. A viúva de 65 anos passa a mão sobre a sujeira e repete o pedido de desculpas pela desordem em frente ao picadeiro. O circo, inaugurado pela família de gaúchos em 1997, não tem qualquer plateia há quatro semanas. A última apresentação, em 16 de março, foi sucedida por um decreto que calou as gargalhadas no bairro Ipanema, zona sul de Porto Alegre — a prefeitura foi forçada à edição da medida para conter o avanço do coronavírus no município.
— Meus filhos nasceram e cresceram aqui dentro, aprenderam a amar essa vida. Só que, com tudo que está acontecendo, já pensei em desistir. Se não fossem as doações, não sei o que seria da gente — lamenta a mulher, que passou a responsável pelo circo — e por cinco filhos — após a morte do marido, em junho de 2019, vítima de pneumonia.
Instalado em 6 de março na Avenida Juca Batista, o Park e Circo Las Vegas teve lotação nos primeiros dias: até 1,5 mil crianças e adultos adquiriram o passaporte em cada noite, ao custo de R$ 25. Apenas dois finais de semana, porém, antecederam as restrições da pandemia, e o dinheiro cobriu somente as despesas com a divulgação do espetáculo e parte dos salários da equipe.
No dia seguinte ao fechamento, uma placa pintada a mão cerrou a bilheteria. A imagem ressalta uma dupla de palhaços com sentimentos distintos. Sorridente na pintura, Pirulito deixou o grupo pela estabilidade formal de empregado em um supermercado da região.
— Depois que o pai morreu, o circo perdeu a graça pra mim — justifica Alan dos Santos, 39, explicando não só porque deixou de ser Pirulito, mas também como perdeu o sorriso ilustrado.
Dedé, o palhaço de rosto triste, tampouco pode ser visto: trata-se do fundador do circo, Getúlio Alves dos Santos, 62 anos, pai dos jovens que, ao lado da mãe, lutam para manter o picadeiro montado. A influência do ex-marido é clara no trailer em que Maria Sirlei vive com outro filho, Alex Guilherme dos Santos. Fotos e caricaturas ainda decoram a estante, e recortes de jornais com a trajetória do primeiro palhaço são guardadas com carinho em um fichário. Com a partida precoce do pai, "ativo e sempre muito divertido", como definiu, o mágico de 29 anos acumulou a função de administrador do espaço.
— Ele era o mastro do circo, o cara que sabia ir atrás de recursos, de patrocínio, de tudo. No leito de morte, pediu para não desistirmos. Por isso lutamos — relembra Alex.
Escondida atrás das cortinas, a maior das atrações está tombada sobre o assoalho: um gorila mecânico de quatro metros de altura deixou de assustar o público. Com alto-falantes que urram contra os espectadores, "The King" é inspirado no King Kong hollywoodiano e foi a grande conquista de Getúlio enquanto permaneceu à frente do circo. Comandado por controle remoto, o animal foi comprado nos Estados Unidos e batizou o circo até a morte de seu criador — desde então, o nome foi trocado por conta da parceria que permite ao circo pagar o aluguel do terreno, que custa R$ 8 mil mensais. Ao lado do picadeiro, o globo da morte expõe uma das motos usadas no show, outra pirotecnia estacionada no espaço que vive dias sem emoção.
Os brinquedos elétricos são ligados frequentemente, outros desmontados e pintados para evitar a corrosão do tempo sem uso. Os equipamentos têm bom estado aparente, fruto do esforço de quem dorme e acorda no circo, nos tantos trailers e caminhões vazios de alegria. Com custo de manutenção superior a R$ 20 mil mensais, acrescido dos rendimentos perdidos, o prejuízo estimado é de R$ 100 mil desde a última bilheteria.
Nascido como Circo Real Di Roma e rebatizado inúmeras vezes a partir de parcerias, o local contava com 45 profissionais nas excursões por Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul. Até que as apresentações foram suspensas. O administrador surpreende ao revelar que mais da metade dos artistas decidiu permanecer no terreno, mesmo comunicados da dispensa por falta de recursos para manter os salários em dia: "Juntos com o circo, sempre" foi a resposta ao circo familiar.
Hoje, cestas básicas doadas por comerciantes e moradores do bairro se tornaram essenciais para manter a equipe. Chocolates foram doados e distribuídos pelos comediantes a famílias carentes.
Com campanhas nas redes sociais, doações em dinheiro foram feitas de moradores de municípios no norte do Brasil, local nunca visitado pelos artistas.
O alvará para apresentações, expedido pelo executivo e afixado na entrada do circo, venceu neste domingo de Páscoa, data em que o grupo realizou uma apresentação para cadeiras vazias. Por meio do Facebook e do Instagram, malabaristas, mágicos, palhaços e demais artistas fizeram um show online. Gratuito, o espetáculo foi acompanhado por mais de mil espectadores. Quem quisesse podia contribuir com qualquer valor para uma das contas do circo.
Após deixarem o bairro Ipanema — mudança ainda sem data definida —, o grupo irá à Restinga, no extremo-sul da Capital. Mas não sem antes agradecer à ajuda da vizinhança.
— Depois que isso passar, e vai passar, vamos fazer uma apresentação gratuita para comemorar e mostrar todo nosso carinho por todo mundo que está do nosso lado — finaliza Alex, com um sorriso de esperança de quem não vê a hora de o espetáculo recomeçar.