Em um imóvel de exterior discreto à esquina das ruas da República e João Alfredo, na Cidade Baixa, a cena cultural e boêmia ferveu em Porto Alegre nas últimas duas décadas. Nomes como Gilberto Gil, Caetano Veloso, Michael Stipe, Fito Páez, Luana Piovani, Lázaro Ramos, entre dezenas de outros artistas locais, nacionais e internacionais passaram pelo Ossip Bar, o primeiro a movimentar as imediações do que se tornaria, a partir dali, o epicentro da agitação do bairro.
Cruzar a porta do local, para muitos, é como chegar em casa. A mobília e os quadros que tomam conta das paredes são praticamente os mesmos desde que foi inaugurado, em novembro de 1997, e as pizzas xadrez que viraram sucesso entre a clientela seguem no cardápio. O que nem todos sabem é que ele já não é mais o mesmo. Tão discretamente quanto assistiu a concorrentes abrirem e fecharem as portas ao longo dos anos, o reduto cult da CB mudou de nome e de proprietários há cerca de quatro meses. Agora chama-se Urso de Varsóvia, e é administrado por um casal de funcionários do antigo bar.
— A vida se resume a três coisas: nascimentos, casamentos e óbitos. Agora teve um óbito e está tendo um nascimento. Incluímos coisas novas, mas o que as pessoas gostavam foi mantido — conta Gustavo Reich, 45 anos.
Um neon vermelho em formato de cabeça de urso e o cardápio com o novo nome — que traz mais opções de drinks, incluindo o "do Urso", preparado com whisky e mel — são os únicos indícios visíveis da mudança, oficializada em agosto. Frequentador assíduo do local desde que abriu, o novo dono foi quem escolheu a exótica alcunha, de origem não menos insólita. O apelido foi pensado para ser o nome "de guerra" de um aspirante a boxeador amigo de Reich — a carreira como pugilista não deslanchou, mas o Urso de Varsóvia nunca saiu do seu imaginário. Por linhas tortas, a transferência conectou-se com a história do bar. Ossip Mandelstam, poeta homenageado no antigo nome, nasceu na capital polonesa quando a área era administrada pela Rússia.
— Sempre gostei do nome, e queria usar em outra coisa. Só depois que eu descobri que o Ossip também nasceu em Varsóvia — diz.
Aos recém-chegados — e sempre há algum, especialmente em dias de protestos que terminam no Largo da Epatur —, parece não fazer diferença como é chamado o bar que, por mais de 20 anos, funciona sem placa nem letreiro. De pé em frente ao balcão de madeira, Paulo Jardim, 51 anos, degustava seu primeiro whisky com gelo no local em uma sexta-feira no começo de novembro. Funcionário público em um prédio das imediações, o morador do bairro Petrópolis conhecia apenas o almoço do Ossip — o irmão mais novo dos antigos proprietários segue com o restaurante ao meio-dia. Gostou das primeiras impressões noturnas.
— Não sabia que tinha mudado. Quando quero tomar um whisky normalmente vou para casa, mas, como gosto do ambiente daqui, vim para ver como é à noite. Tem um público interessante. É tipo um boteco, mas com um clima gostoso — sorri.
Reich e a namorada, Deborah — que atuava como gerente do Ossip — assumiram o bar depois de meses de negociação com os fundadores — dois irmãos uruguaios que preferiram não ser citados na reportagem. Mais do que mudar o lugar, o objetivo do casal era salvar o ponto, que, devido ao movimento fraco e às confusões que conturbaram a João Alfredo nos últimos anos, corria o risco de ser fechado.
Se a sutileza da nova configuração pode ser um alívio para quem se afeiçoou ao Ossip, a troca de nome ainda surpreende clientes de longa data. Sentado à uma mesa de canto com dois amigos, o desenhista Odyr Bernardi só tomou conhecimento da mudança ao ser questionado pela reportagem:
— Sério que não é mais Ossip? — questionou, um tanto intrigado.
Parte do trio, o editor Fabiano Denardin, 42 anos, tinha descoberto meses antes, pelo cardápio. Apesar de frequentar o local semanalmente, confessa não ter assimilado totalmente a novidade.
— Na hora, foi meio chocante. A gente sabe que mudou, mas não conseguimos chamar diferente. É Ossip — conta Denardin, que conheceu o bar no começo dos anos 2000.
Bar substituiu tabacaria
A dificuldade dos veteranos em chamar o local pelo novo nome tem menos a ver com a resistência ao Urso do que com a memória afetiva relacionada ao precursor. Para quem frequentou a Cidade Baixa nas últimas duas décadas, é quase impossível dissociar a boemia do Ossip. Dentro dele, a decoração marcante, com paredes em cores fortes cobertas com dezenas de quadros de diferentes tamanhos, luz baixa e móveis em madeira também torna difícil imaginar que, em algum momento, o imóvel de esquina tenha servido para outra coisa.
Por quase 10 anos, no entanto, funcionou ali uma tabacaria. O negócio ia mal das pernas quando os proprietários resolveram transformá-lo. A ideia do bar foi consequência natural do que já ocorria por lá à tarde, quando estudantes de publicidade, cinema e audiovisual se reuniam para beber e jogar conversa fora.
— A tabacaria vendia cerveja, então sempre tinha uma gurizada lá. Íamos ali bater papo, beber e ouvir música — recorda o realizador audiovisual Gustavo Spolidoro, 47 anos.
Hoje professor da PUCRS, Spolidoro acompanhou de perto a conversão da tabacaria no Ossip, do qual se considera "co-fundador". Segundo ele, os próprios irmãos fizeram os móveis — um deles é autor de parte dos quadros expostos no local —, e, desde o começo, apostaram nos amigos para divulgar o novo bar — Spolidoro chegou a trocar uma menção radiofônica por R$ 200 em cervejas, e bebeu de graça por vários meses.
Em pouco tempo, o local virou o destino certo de estudantes de comunicação e cinema, que se encontravam dentro dele, mas, principalmente, na calçada em frente, atraindo a atenção para o ponto até então inexplorado pela boemia. Funcionar "à paisana" foi uma estratégia para tentar conter a movimentação crescente que, no começo dos anos 2000, chegava a interditar parte da Rua da República. Preocupado com a aumento dos "forasteiros", um dos irmãos, conhecido pelo temperamento ranzinza, cobriu com tinta preta o letreiro com o nome do bar.
Os esforços para inibir o público não só não surtiram efeito, como o local virou chamariz para outros empreendedores, que embarcaram no sucesso do Ossip e abriram bares nas proximidades — a maior parte teve vida bem mais curta, encerrando as atividades em poucos anos. Também multiplicaram-se os clientes famosos. Além dos atores globais levados pelos clientes do meio audiovisual — entre eles Luana Piovani, que virou frequentadora —, o lugar foi destino de dezenas de músicos que se apresentaram em Porto Alegre nesse período — o vocalista do REM, Michael Stipe, foi um dos que passaram por lá e, em 2006, Caetano Veloso e Gilberto Gil apareceram juntos no local depois de um show.
O sucesso inesperado, determinante para o futuro do eixo João Alfredo-Rua da República, teve reflexos no bar. Com o público cada vez mais aleatório, começou a perder prestígio entre frequentadores antigos, saudosos da atmosfera alternativa. A movimentação desenfreada trouxe, ainda, a sensação de insegurança. Primeiro, em 2005, quando um homem, após uma discussão, baleou dois frequentadores e um dos donos. No começo deste ano, uma execução em frente a outro estabelecimento, na João Alfredo, afugentou parte da boemia — e pelo menos outros dois bares fecharam as portas.
Os irmãos ensaiaram uma migração sutil abrindo uma filial no Moinhos de Vento, em 2014. Mas o local não teve o desempenho esperado e foi fechado. Enquanto isso, o ponto na Cidade Baixa agonizava, às vezes com mesas vazias por horas a fio.
Habitué do bar — onde bate ponto, em média, três vezes por semana — o cineasta Otto Guerra foi dos que se afastaram com a popularização do Ossip. Acredita, no entanto, que o período decadente serviu para que o local voltasse às origens, ressurgindo como destino atraente para o público do meio cultural.
— Quando virou um bar da moda, não foi bom para os frequentadores antigos, que eram mais alternativos. Hoje, de certa forma, o Ossip segue como um fantasma dele mesmo. Se quiser saber como era 20 anos atrás, é só ir lá agora. Ironicamente, está voltando a ser o que era.