O placar já contabiliza 9 a 0 para a União dos Veteranos da Bocha (UVB) quando Laurindo Verdum, 73 anos, atravessa a cancha em direção às bochas mescladas da sua equipe, a Associação de Bocha do Jardim Floresta (ABJF).
— Não é tua vez agora, ô cabeça.
— Já está gambá?
Laurindo passa pelos corneteiros escorados na beirada da cancha mostrando discretamente os dedos da mão esquerda: o dedão e o indicador formando uma rodelinha. O discreto gesto obsceno é um dos poucos momentos tensos do confronto na cancha da UVB, no bairro Jardim Itu. Os espectadores protestam e Laurindo percebe que exagerou na dose.
— Perdão, não tinha percebido que estava na presença de uma dama – desculpa-se o jogador, dirigindo-se à assistente de reportagem de GaúchaZH.
Ela é a única mulher entre os 32 torcedores enfileirados, quase todos animados senhores acima de 60 anos. Outros oito jogam canastra em uma mesa próxima, alheios à magnitude do evento dessa quarta-feira (12). Trata-se da primeira partida da final do 28º Campeonato Municipal de Bocha na categoria sênior em piso natural. Para as duas equipes chegarem até ali, foram 17 jogos, realizados desde abril em canchas de norte a sul da Capital.
O uniforme azul e amarelo da ABJF reflete o histórico da equipe. As letras foram impressas por cima da sigla anterior, do Centro de Comunidade da Vila Floresta. Descontentes com a atual administração, alguns membros deixaram de frequentar o centro e fundaram a ABJF em uma cancha mais acanhada. Terem chegado até a final superou as expectativas da equipe.
— O antigo administrador da cancha faleceu, assim como a maioria dos que começaram o time. Daquela época, sobramos eu e mais dois. Todo time de bocha já começa meio em extinção – brinca Pascoalino Feroleto, 68 anos, titular ao lado de Laurindo e Cid Bittencourt.
Do outro lado, vestindo listras alvicelestes, a UVB se gaba da boa infraestrutura da cancha e da qualidade dos seus jogadores – há mais três equipes da UVB em outras modalidades.
— Bocha já foi sinônimo de cachaça, mas não gostamos de bebedeira nem de cigarro na cancha. A palavra é confraternização. É turma de camaradas, uma italianada boa – conta Áurio Flores, 70 anos.
Bocha já foi sinônimo de cachaça, mas não gostamos de bebedeira nem de cigarro na cancha. A palavra é confraternização
ÁURIO FLORES
70 anos
O grande trunfo do time é Valmor dos Santos, o Pica-Pau, 62 anos. Sua especialidade é o arremesso, que ele executa com a curiosa mania de segurar a barriga para manter o equilíbrio. Mas é justamente um vacilo dele que permite à ABJF fazer seu primeiro ponto.
— Capote, não! — diz Pascoalino, de dedo em riste, aliviado, à torcida.
No fim das contas, o placar fecha em elásticos 15 a 3 para a UVB. Nada está decidido, pois a ABJF manda o segundo jogo no Jardim Floresta, no próximo dia 20. Se vencer, há um terceiro jogo em cancha neutra. É o que todos esperam, já que ninguém ali parece ter compromisso melhor para as tardes de quarta-feira.
O que vale é a convivência
O Campeonato Municipal de Bocha de Porto Alegre é um dos mais longevos organizados pela prefeitura de Porto Alegre, desde 1992. São quatro categorias – principal e sênior, em cancha natural ou sintética – e cada uma delas tem séries ouro e prata, para os melhores e piores classificados. Ao todo, são dezenas de equipes mobilizadas de abril a novembro. Há um bom motivo para isso que é superior ao esporte.
— Dá uma olhada nesses aposentados todos aqui. Imagina eles dentro de uns apartamentinhos de 40 metros quadrados aqui da vizinhança, sem ter com quem conversar, como se divertir. O pessoal vem pela bagunça, para conviver entre amigos. Tem quem venha pela manhã e volte só no final da tarde – conta Mário Estael, da União dos Veteranos da Bocha, do bairro Sarandi.
Diversos frequentadores têm em comum o gosto pelo esporte na juventude. Conforme a idade avança e o corpo apita, adotam a bocha para manter a convivência com um grupo de esportistas amigos. É o caso, por exemplo, de Osvaldo Ribeiro, 74 anos. Ponteiro titular do time vencedor ontem, ele reaparece minutos depois do jogo na cancha vestindo uma regata e chacoalhando uma vitamina.
— Viuvei há pouco tempo, não tenho porque ficar em casa. Se não estou aqui, estou na dança — conta.
*Colaborou Raíssa de Ávila