As ciclovias de Porto Alegre se transformaram em um desfile de mochilas térmicas vermelhas, laranjas e verde-limão. Atores de nova modalidade de atividade econômica e de logística, ciclistas entregadores cadastrados em aplicativos de comida multiplicam-se pelas vias da cidade há dois anos, seguindo tendência vivida em outros centros urbanos do país.
Em São Paulo, por exemplo, pesquisa da Associação Brasileira do Setor de Bicicletas (Aliança Bike) apontou que o número desses trabalhadores cresceu 5,4 vezes desde 2018.
O ganho médio relatado a GaúchaZH por entregadores de Uber Eats, Rappi e Ifood sobre magrelas, em Porto Alegre, é de R$ 450 semanais, quando se dedicam integralmente ao trabalho.
É o valor parecido ao que Tiago Machado Bittencourt, 37 anos, recebia fazendo folhas de pagamento, cálculos trabalhistas e rescisões em um escritório de contabilidade. Demitido em razão da crise, há dois anos, e sem conseguir se recolocar na área de departamento pessoal, estreou há três meses nas entregas de bike. Chega a trabalhar de domingo a domingo, fazendo até 12 horas por dia com o aplicativo ligado.
— Foi solução provisória, para ajudar no sustento da família — diz.
Algumas das vantagens que atraem para a atividade é a possibilidade de “ser o dono do próprio horário” (ganham por entrega, então escolhem quando trabalhar e os turnos), além de baixo investimento inicial.
É preciso ter apenas um smartphone, um bom pacote de internet no aparelho e e uma mochila térmica – Tiago pagou cerca de R$ 100 pela sua. Todos ouvidos por essa reportagem já tinham bicicleta, e há ainda ciclistas que usam sistemas de compartilhamento como o Bike POA.
Coordenador de projetos da Aliança Bike e pesquisador em políticas de mobilidade urbana, Daniel Guth afirma que trata-se de um fenômeno recente “de crescimento meteórico”, que se soma a todo um segmento de logística sustentável que já era realizado por bicicletas e triciclos.
— A ciclologística soluciona um problema fundamental em qualquer centro urbano que é a circulação de bens e produtos de maneira eficiente, rápida, com baixa ocupação de espaço e não poluente.
A associação estima que, quando um entregador de moto dá lugar a um entregador de bike, deixa-se de lançar 2,75 quilos de gás carbônico (CO2) por dia na atmosfera. Isso representa 1 tonelada de CO² por ano por cada ciclista entregador.
Necessidade
No entanto, a sustentabilidade não parece ser a motivação da maioria dos trabalhadores do ramo. As entregas de bike por aplicativos são vistas como alternativa à falta de trabalho, como no caso de Tiago. Além disso, 59% dos ouvidos na pesquisa da capital paulista estavam desempregados quando começaram na atividade, situação semelhante a de ciclistas entrevistados em Porto Alegre para a reportagem.
A partir daí, optam por longas jornadas sobre a bicicleta, mesmo sem benefícios trabalhistas, sem fundo de garantia e INSS, por exemplo.
— Eles têm de botar comida na mesa, têm questões mais urgentes — comenta Guth.
O serviço de bike por aplicativos faz o quarto turno de compromissos de Fernando Gonçalves, 24 anos, estudante de Publicidade e Propaganda. Por volta das 10h, ele começa no estágio. No final da tarde, vai para a UFRGS. Por volta das 21h30min, coloca a bag térmica nas costas e faz entregas até meia-noite. Se a demanda estiver boa, até 1h30min. O trabalho rende cerca de R$ 200 a mais no final do mês.
— Gosto da liberdade, da saúde que proporciona — explica.
Há pelo menos nove anos, já existem empresas e cooperativas de entregas por bicicleta em Porto Alegre. Membro de uma delas, a Graxaim Bicientregas, Tassia Furtado integra os movimentos Mobicidade e BikeAnjo na Capital. Ela pertence a uma geração tão apaixonada pelas duas rodas que decidiu fazer dela seu trabalho – diferentemente do perfil mais comum de entregadores por aplicativo, que precisavam de dinheiro e viram na bicicleta uma solução.
— Mostra que o pessoal está precisando de grana.
Embora considere uma grande vantagem a disseminação de um transporte limpo para entregas, com ocupação mais responsável do espaço no trânsito, ela tem críticas com relação à valorização do trabalho do ciclista. Lembra de um diálogo que teve na rua com um ciclista entregador por aplicativo, no começo dessa modalidade na Capital. Enquanto ela cobraria mais de R$ 20 por uma entrega até a Zona Sul, o rapaz faria trajeto semelhante por R$ 8.
UberEats, Ifood e Rappi não divulgam os números de ciclistas entregadores cadastrados ou o valor pago por corrida (varia por questões como clima, dia da semana, horário, zona da entrega e distância percorrida). Enquanto a primeira empresa já têm trabalhadores desse tipo desde 2017 na Capital, as outras iniciaram a modalidade neste ano.
A parceria construída pelos “Guris do Praia”
Marcos André Júnior de Oliveira Santos, 21 anos, sai de casa com a meta de faturar R$ 100, e trabalha ao menos dez horas por dia para conquistá-la. Estava desempregado quando começou a realizar entregas com a Caloi que, até então, usava para ir até seus jogos de futebol. Mas já considera a atividade mais vantajosa do que seu último emprego com carteira assinada, em uma metalúrgica, onde fazia, embalava e carregava peças para caminhão, mal vendo a luz do dia.
A maior vantagem, para ele, é poder fazer seus próprios horários e trabalhar quando quiser, sem a cobrança de um chefe. Sua motivação é o filho Theo, de três meses.
— No intervalo, entre entregas de almoço e de janta, vou para casa ficar um tempo com ele — afirma.
Conta que seu recorde, nos seis meses em que trabalha para aplicativos (fica com Uber Eats, Rappi e Ifood ligados para render mais), foi de R$ 144 no feriado de 20 de setembro. A corrida mais valiosa que já fez lhe rendeu R$ 9 para 3,8 quilômetros pedalados. A mais barata, R$ 2,50 para 2,2 quilômetros.
– Me arrependi – lembra.
Marcos é um dos poucos ciclistas que costumam aguardar os pedidos ao lado do Praia de Belas Shopping, entre algumas dezenas de motociclistas que entregam pelos mesmos aplicativos. Chamam-se de “Os Guris do Praia”. Ali, aproveitam para falar de futebol, reclamar quando estão mal de pedidos e alguns até descansam deitados no chão. Fazem brincadeiras um com o outro, o tempo todo. Enquanto posava para as fotos da reportagem, Marquinhos, como é conhecido ali, teve de ouvir:
– Vai ficar famoooooso!
À noite, em razão da insegurança, ronda a cidade na companhia de um amigo também ciclista e entregador. Quando um aceita uma corrida, o outro vai junto. Acredita que roda 30 quilômetros por dia, no máximo, pelos bairros Menino Deus, Centro e Cidade Baixa. Não vai muito longe porque profissionais de bike costumam ser acionados para trechos mais curtos. Segundo a Rappi, as rotas para eles têm, em média, três quilômetros.
Cuidados
Outra questão de segurança envolve equipamentos de prevenção a acidentes. Marcos Santos não usa capacete (diz que “aperta as orelhas”), nem joelheira ou luvas (não são exigidos pelo Código de Trânsito Brasileiro). A menor parte dos entregadores ciclistas que a reportagem encontrou em Porto Alegre usava proteção individual.
Questionadas, empresas se posicionaram por meio de notas.
“A empresa sempre reforça a todos os usuários, entregadores e motoristas parceiros que usam o aplicativo que cumpram sempre todas as leis e respeitem as normas do Código de Trânsito Brasileiro, incluindo o uso de equipamentos de proteção individual”, informou a Uber Eats.
O Ifood declarou que incentiva parceiros a seguir leis e desenvolve ações que incentivam boas práticas. Já a Rappi afirma que instrui todos entregadores parceiros a observarem regras de trânsito e a usarem materiais de proteção pessoal.
“Não me acho velho, mas o mercado exclui"
Aos 49 anos e com um diploma de Administração recém obtido, Paulo Roberto Silva Severo estava com dificuldades de conseguir emprego formal. Trabalha como garçom em uma casa de eventos, mas em baixa temporada quase não é chamado para o serviço. Largou currículos para vigilante, seu último trabalho com carteira assinada, em 2015, mas não obteve sucesso.
— Não me acho velho, mas o próprio mercado exclui — queixa-se Severo.
Sua irmã, lojista, sugeriu que virasse ciclista entregador. Se cadastrou em aplicativos há um ano – faz Uber Eats e Rappi. “Se puxando”, consegue tirar até R$ 500 por semana.
– Coisa que mesmo tendo graduação, às vezes o cara não tira – compara.
Mas Severo já sofreu dois acidentes desde então, o último na semana passada. Conta que era madrugada e chovia muito. Não viu se o sinal estava aberto ou fechado e foi atingido por um carro. Teve escoriações, alguns cortes e inchaço em uma das pernas. Levou a bike com o pneu torto para a oficina e usava bicicleta emprestada quando abordado pela reportagem.
O risco a que está exposto e a criminalidade da Capital são alguns dos fatores pelo qual não se vê fazendo isso por muito tempo.
– Almejo crescer em outras áreas – acrescenta.
Uma das poucas mulheres na atividade
Lyorane Toldo, 40 anos, é uma das raras mulheres fazendo entregas de bicicleta por meio de aplicativos. Conhece uma amiga que também faz – quem a incentivou a começar a entregar – e uma vez viu outra entregadora com mochila colorida nas costas. E só, diz.
A porto-alegrense começou na atividade para complementar a renda, mas recentemente foi demitida da empresa em que trabalhava na área financeira. Poder ganhar dinheiro com a bike coroa um reencontro importante para ela. Apaixonada por sua Cecizinha vermelha quando criança, ficou três décadas sem andar de bicicleta. Comprou uma há dois anos para participar de passeios em grupo.
– Tu sente a natureza, e meu condicionamento físico melhorou – conta Lyorane.
Ela não tem dúvidas de que a insegurança é um dos fatores que afastam as mulheres desse trabalho. Ela atua, inclusive, nos horários mais temidos: até 2h, 3h da manhã. Além da boa quantidade de pedidos à noite, evita o trânsito.
– Não são todas as ruas que têm ciclovia, e acho perigoso.
Passar longe de vias como a Avenida Ipiranga e do parque da Redenção são algumas das precauções que toma à noite. E se vê que a cidade está mais deserta que o normal, prioriza a segurança: esquece o que poderia estar faturando e volta para casa.