O Batalhão de Choque fazia um cordão de isolamento na frente do Palácio Piratini. No ápice de uma greve, devia impedir que professores invadissem a sede do governo estadual. Você já viu cenas como essa nos jornais: manifestantes berrando sua indignação a centímetros do escudo de policiais de expressão apática. Então sabe que não é preciso muito para essa distância acabar, dando lugar à confusão e à violência.
Mas ali no meio tinha um brigadiano que não precisaria de cassetete para cumprir as ordens. Atacado por uma manifestante exaltada de um lado, incitado pelos colegas de farda a reagir do outro, ele apenas tirou o capacete.
Olhando nos olhos dele, a grevista parou. Ela pediu desculpas e deu alguns passos para trás. Outros manifestantes repetiram o movimento.
Esse homem é João Batista Bandeira, nome que recebeu por promessa de sua devota família católica, dono de uma carreira de três décadas na Brigada Militar. Mas também é Dengaku, que significa "transmissão de iluminação", exatamente o que faz como monge em um centro zen-budista na área rural de Viamão. Aliando dois currículos contrastantes, ele provavelmente evitou um confronto apenas por mostrar seu rosto.
— Ela entendeu que nós somos iguais — relembra.
Hoje com 53 anos, ele cresceu perto do quartel no bairro Partenon — era filho de militar. Entrou para a Brigada com 19 anos, depois de servir ao Exército. Nem lembra de um motivo específico para essa decisão. Naquela época, não achava que tinha muitas possibilidades.
Quanto à vida monástica, recorda bem que o motivo para se envolver com o budismo foi sua mulher, a hoje também monge Shoden — na época, praticante e namorada. Ela convenceu o brigadiano a fazer meditação pela primeira vez em um centro no bairro Auxiliadora, há cerca de 20 anos. A experiência foi um fracasso.
— Senti muitas dores. Lá pelos dez minutos, achei que não ia terminar nunca.
Bandeira se recusou a tomar o chá servido após a meditação e foi xingando a namorada até a parada de ônibus. Disse que nunca ia voltar, jura que não se concretizou. Com Shoden envolvida na comunidade budista, ele começou a participar de atividades e a gostar das pessoas. Passou a treinar meditação em casa e se identificou com os preceitos do budismo (como "não fazer o mal", "fazer o bem" e "fazer o bem a todos os seres"). Acabou encontrando o equilíbrio que serviria como uma luva ao trabalho na polícia.
— Chegar nessas situações de risco, de quase morte, e conseguir manter o controle: o budismo me deu isso. Num tiroteio, por exemplo, é tudo tão tênue para tomar uma decisão equivocada. A meditação me ajudou a lidar com o espaço de tempo: deu o instante que me faltava — diz o monge, que defende o ensino da meditação na formação de brigadianos.
Não era só nessa situação que o lado zen transparecia por debaixo da farda. Bandeira também tocou um projeto da Brigada em escolas públicas dos bairros Rubem Berta e Mario Quintana, onde tentou ensinar os alunos de quarto ano a meditar. E, sempre que prendia algum suspeito, garantia para ele que seria apresentado à delegacia com dignidade.
— Meus colegas diziam para eles (suspeitos) que tinham sorte por serem presos por mim.
Hoje comandante-geral da BM, o coronel Mário Ikeda trabalhou com Bandeira no início da década de 1990 e lembra do "jovem policial dedicado, zeloso, com um grande espírito de equipe".
Perderam o contato diário em 1993, mas o sentimento de amizade ficou. E não nega que, quando descobriu que Bandeira se tornou monge budista, ficou "um pouco surpreso".
— Não é comum encontrarmos monges budistas em Porto Alegre, muito menos na Brigada Militar.
Dois nomes, múltiplas paixões: caminhos que se cruzam
Não foi só o Dengaku que colaborou para a carreira do Bandeira. O monge leva para seus discípulos a paixão que via nas arquibancadas de estádios e no sambódromo do Porto Seco, onde trabalhou em muitos Gre-Nais e carnavais.
— O clamor nas arquibancadas para uma escola de samba com uma boa evolução... Isso entusiasma qualquer um, dá vontade de fazer coisas incríveis na vida. Voltava para a comunidade e usava isso nas minhas palestras.
Há cinco anos, Dengaku se dedica exclusivamente à Via Zen (Associação Zen Budista do Rio Grande do Sul) e ao sítio que serve de sede em Viamão. Leva uma rotina que inclui acordar cedo para meditar (às 4h30min), dedicar-se à agricultura (criam vacas, fazem queijo e ele mesmo opera o trator na plantação orgânica de verduras e legumes) e transmitir sua iluminação, como o nome que lhe foi dado rege.
Vestindo o hábito monástico com quimono por baixo — a linhagem de budismo que seguem vem do Japão —, ele recebe praticantes para retiros todos os meses. Dengaku tem discípulos espalhados pelo Brasil e até pelo mundo: fazendo aconselhamentos pelo Skype, ele é sensei de gente que está na Argentina e na Alemanha. É definido como um líder intenso, que "sacode as pessoas". Por menos zen que possa parecer, os seguidores garantem que faz sentido e que 'ficar esperto' é um ensinamento importante nessa prática.
— O que ele faz, faz com o coração — comenta ainda o designer César Pires, 49, que veio de São Paulo para um retiro na Via Zen e conhece Dengaku desde antes da ordenação como monge.
Embora tivesse direito ao porte, a primeira atitude que Bandeira tomou quando se aposentou da Brigada foi devolver a arma. Quando pergunto se, em algum momento, ele se sentiu perdido dentro da instituição, ele admite que "talvez sim", mais para o final da carreira. Mas logo desconversa. Diz que seria injusto falar isso: reitera que fez muitos amigos, aprendeu muita coisa e teve alguns comandantes maravilhosos.
— Eu acho que faria a trajetória do mesmo jeito. Esse somatório me traz hoje à satisfação que eu tenho, e sou muito feliz por essa oportunidade.