Ocupando quase metade da calçada em um trecho de cerca de cinco metros, um barraco de madeira divide opiniões em um dos bairros mais nobres de Porto Alegre. O impasse sobre a permanência de Paulo Renato Belém Padilha, 55 anos, em uma construção irregular na Avenida Nilópolis, no Bela Vista, foi contado pelo colunista Paulo Germano em janeiro de 2018. A banca de livros improvisada revolta parte dos moradores e mobiliza outra parcela, que defende o imóvel menos pomposo da região.
O mais recente capítulo da história se desenrola na Justiça. Uma ação de despejo da prefeitura de Porto Alegre – que comprovou a falta de alvará para comércio de rua – só não foi concretizada por causa de abaixo-assinado feito pela vizinhança e que motivou liminar. Paulo poderá ficar no local enquanto não sai o veredito. Sobre o abaixo-assinado, o Executivo informa que: “Embora seja sensível à manifestação, a prefeitura não tem poder para flexibilizar o regramento urbano previsto em lei. A construção de moradias em passeio urbano é proibida. E a venda de livros deve obedecer às normas pertinentes a esse tipo de atividade. Havendo disposição do livreiro em se adequar às normas, a prefeitura dará as liberações de bom grado”.
Em 2018, o "Livreiro da Encol" sustentava-se em uma autorização provisória – exposta na parede até hoje, apesar de já expirada –, emitida pela Secretaria Municipal de Desenvolvimento Econômico (SMDE). O ofício permitia a venda de livros usados, na condição de ambulante.
— Eu estava deitado no chão e uma mulher passou perguntando se eu queria um livro. Aí fui juntando e arrumando tudo. E cada vez traziam mais - relembra, entre caixotes, enquanto organiza com esmero as publicações.
A ordem é definida pelos desenhos das capas. Paulo não compreende qualquer palavra escrita. É analfabeto, pois deixou a escola nos anos primários.
— Mesmo sem saber ler, ele organiza em uma lógica. Livro de fotos e de poesias estão todos juntos — alerta a funcionária pública Rosa Maria Levandovsky, 52 anos, enquanto compra dois livros de imagens para as filhas.
Com preços variados, definidos na hora da venda, ele estima movimentar R$ 1 mil por mês com a venda das obras. O dinheiro auxilia na alimentação e na compra de itens de higiene e limpeza. Atônito desde antes das 7h, anda de um lado para o outro da calçada, e não conversa enquanto os itens não estiverem expostos da maneira que o agrade.
— Volta em meia hora. Meia hora — ordena à reportagem, cumprindo o prazo estabelecido.
Para erguer a casa, o livreiro recolheu materiais em entulhos próximos, saga que demorou mais de um mês para ser concluída:
— Comecei do chão. Coloquei um compensado, um saco plástico, e assim segui. Sofri com tempo ruim, passei muito trabalho. Vim da estaca zero, do chão, passando necessidade.
Com frestas aparentes, os dias de chuva são os mais difíceis, comparáveis ao desprezo de alguns pedestres:
— Tem uns que passam e falam "tem que te tirar daqui". Mas o resto ajuda - ameniza.
Pela Lei Municipal 10.605/2008, a multa prevista por atividade comercial sem autorização é de 50 Unidades Financeiras Municipais (UFM). Em caso de reincidência, a multa sobe para 100 UFM. Atualmente, cada unidade vale R$ 4,17. Porém, a liminar recebida suspendeu as sanções.
Como não compareceu ao tribunal no dia da audiência, 22 de abril, o processo foi suspenso por 30 dias. O magistrado Ângelo Furlanetto Ponzoni, do 1º Juizado Especial da Fazenda Pública, justificou a suspensão: "a fim de verificar a possibilidade de um acordo com o Município". O prazo se encerra nesta quarta-feira (22) e ainda não há definição sobre o futuro do livreiro.
O morador é atendido pela Defensoria Pública do Estado. A instituição afirmou ter tentado acordo junto à prefeitura e que, após negativa, "seguirá, pelos meios legais, pela via da conciliação ou pela via judicial, na busca pelos direitos do cidadão e a regularização de seu ponto". A prefeitura afirma que não tem informação de que tenha havido tentativa de acordo por parte da Defensoria com o Executivo e que, “na única audiência ocorrida na Justiça, a parte interessada (livreiro) não compareceu”.
Segundo a Fundação de Assistência Social e Cidadania da prefeitura (Fasc), Padilha recebe acompanhamento e está há anos em situação de rua. “Agora, tem conseguido aceitar o acompanhamento e está aceitando ir ao posto de saúde. Tem tentado-se trabalhar para que ele aceite ir a um abrigo”, informou o órgão.
O sonho de ter uma banca
O antigo morador do Beco dos Cafunchos, no limite entre Viamão e Porto Alegre, mostra os documentos confeccionados com apoio e patrocínio dos "novos" vizinhos. Com a carteira de trabalho sem qualquer registro, surpreende ao revelar que não deixaria os livros de lado por outro emprego. O sonho é ter uma banca, regularizada.
— Uma banca mais direita fica melhor. No começo, fiz isso só para me manter, para não deixar os livros na chuva, na rua. Seria um sonho ter uma banca. Se eu arrumar um serviço, preciso deixar isso, deixar os livros — justifica.
Paulo é avesso a entrevistas e reluta em contar o que o motivou a sair de casa. Resume a decisão a "problemas com a família", e afirma ter deixado para trás os pais e três irmãos. Sem qualquer companhia desde 2014, abre um largo sorriso ao ser questionado sobre "namoricos":
— Ah, isso a gente sempre procura, né?
Vizinhos fazem abaixo-assinado para que ele fique no local
A iminência de retirada do "vizinho" fez com que a jornalista Denise Nunes, 53 anos, organizasse um abaixo assinado. Ela classifica como "injusta" a tentativa de retirar o morador, e afirma que Paulo só busca por ajuda a quem conhece.
— Imagina se tivesse sido alfabetizado. Imagina o que não seria o Paulo talvez? Mesmo nessa idade, ele descobriu a importância do livro, que só foi ter contato depois dos 50 anos de idade. Ele procura saber o que as pessoas gostam pela capa. Ele ouve e vai aprendendo. Isso é incrível. Mostra a possibilidade de a pessoa aprender — reitera a jornalista.
Em seis páginas, 129 assinaturas pedem pela manutenção de Paulo no local em que ele vive desde 2014. Dentre os favoráveis, o "padrinho", como ele define o arquiteto peruano Raul Ibérico Yuli.
— Há anos, quando ele ainda dormia em um papelão no chão, as pessoas começaram a deixar livros. E eu sugeri: por que tu não os vende? - relembra, ao contar que no Natal passado presenteou o livreiro com uma bicicleta:
— Como ele anda muito pra cima e pra baixo, eu comprei. É um cara muito do bem, não faz mal para ninguém. Não fica pedindo nem nada. Por isso gosto de ajudar. Mensalmente, o "padrinho" paga entre R$ 100 e R$ 150 para Paulo cortar a grama de seu pátio, na Rua Lavras.
Nos comércios do entorno da Praça da Encol, o livreiro é conhecido. E o assunto gera desconforto.
— Por que deixar? Se deixar ele morar ali, muitos outros vão requisitar - questiona Amélia Adam, 63 anos, enquanto faz as unhas em um salão de beleza na mesma quadra em que Paulo ergueu o barraco.
— Ele não atrapalha ninguém. Deixa ele ali - defende Caroline Gobi, 22 anos, atendente do mesmo salão.
Para usar o banheiro, ou acumular caixas de papelão para seu estoque, Paulo busca socorro em supermercado próximo.
— Não atrapalha em nada. Nenhum cliente nunca reclamou. Se ele precisa de caixa de papelão para colocar os livros, sempre pede. Usa o nosso banheiro, mas sempre pede. Nunca vi ele pedir nada para os clientes também - conta a fiscal de caixa do estabelecimento localizado na Nilo Peçanha, Maria Inês Leal.
Sabrina Flores, 34 anos, pensa diferente:
– Ele é agressivo. Grosso. Atrapalha ali. Se as pessoas gostam, por que não deixam ele morar então na frente de suas casas? — questiona.