Aprovada sem sequer um voto contrário na Câmara dos Vereadores no dia 20, a nova Lei dos Inventários causa preocupação no Ministério Público e no Conselho de Arquitetura e Urbanismo do Rio Grande do Sul. A lei foi considerada uma vitória expressiva do governo Nelson Marchezan, que entende ser exagerado o número de 5,5 mil imóveis inventariados de Porto Alegre.
Segundo a promotora de defesa do meio-ambiente da Capital, Ana Maria Marchesan, há aspectos positivos na nova legislação, como o estabelecimento de penalidades para casos de dano ao patrimônio. Todavia, ela questiona os efeitos sobretudo do artigo 9º, que legisla sobre os prazos nos casos em que o proprietário de um imóvel provoca a administração municipal para que decida se o bem deve ser incluído ou excluído do inventário da cidade.
Conforme a nova lei, o proprietário que entender que um imóvel previamente inventariado deve sair do inventário precisa acionar a Equipe do Patrimônio Histórico e Cultural (Epahc) da prefeitura. O órgão tem 30 dias para se manifestar. Se não houver retorno nesse tempo, isso "será considerado como uma declaração tácita de ausência de interesse em instaurar o procedimento de inventário relativo ao imóvel questionado". A partir de então, a prefeitura não pode mudar o entendimento por 48 meses, prazo em que o proprietário poderá fazer o que quiser com o imóvel, sem restrições.
— Isso é o que a gente chama de "silêncio positivo", e é uma coisa altamente nociva. É ainda mais grave porque houve uma desidratação da Epahc, com uma ampliação significativa das atribuições que hoje já não são poucas. Se não houver capacidade dessa equipe de dar respostas em tempo hábil, um proprietário poderá pleitear uma certidão depois de apenas 30 dias e realizar uma demolição, se assim desejar, na sequência — analisa a promotora.
Áreas da cidade já inventariadas, como o bairro Moinhos de Vento, e outras ainda sub judice, como o Petrópolis, poderiam ser afetadas pela falta de capacidade da prefeitura de realizar as análises dos imóveis caso a caso. O entendimento do Conselho de Arquitetura e Urbanismo do Rio Grande do Sul é semelhante.
Porto Alegre é uma cidade que, fora o pôr do sol, tem como seu maior valor o imobiliário, as paisagens e as ambiências urbanas. Se a gente não cuidar muito bem disso, perderá um patrimônio cultural extremamente relevante.
ANA MARIA MARCHESAN
Promotora de Defesa do Meio-ambiente da Capital
— Embora seja positivo haver uma lei estabelecendo critérios claros para realizar inventários, o texto aprovado tem potencialidade de prejuízo muito grande. Na prática, o impacto da lei é uma redução da proteção ao patrimônio cultural da cidade, que ela deveria assegurar — declara Oritz Adriano de Campos, presidente da Comissão Temporária de Patrimônio Histórico do conselho.
A prefeitura não nega que a estrutura atual da Epahc, que conta apenas com quatro técnicos contratados, é pequena diante das atribuições previstas na lei. Porém, "espera que seja diferente" a partir de sanção e regulamentação.
— Se a resposta para essa lei for contratar gente, vai ter de contratar gente. A gente tem de querer e legislar a partir desse desejo de uma administração melhor — declara o procurador-geral adjunto de Domínio Público, Urbanismo e Meio-Ambiente, Nelson Marisco.
Embora a Lei dos Inventários tenha sido enviada à Câmara dos Vereadores em junho do ano passado, conforme a diretora da Epahc, Ronice Borges, não houve sinalização do Executivo até agora de que a equipe enxuta será ampliada.
— Por enquanto, não soubemos de nada nesse sentido. Mas essa é uma decisão posterior do governo. Por enquanto, o que se pode fazer a partir da lei é hierarquizar. Usá-la para resguardar os imóveis que o poder público tem interesse de inventariar. Mas, se continuarmos com uma equipe pequena, acho que os prazos podem afetar principalmente os imóveis cujos proprietários têm intenção de desinventariar — declara Ronice.
O Ministério Público aguarda a sanção e a regulamentação da lei para definir os próximos passos, e promete "um estudo profundo da lei tão logo ela entrar em vigor". O órgão teme, assim como a Epahc, "não ter pernas" para atacar casos de prejuízo ao patrimônio histórico. Ana Maria chama a atenção para imóveis icônicos da cidade que são protegidos por inventário.
— A Casa Frasca, na Independência. O prédio da Tumelero, próximo à Rodoviária. São exemplos de imóveis que não são tombados, são inventariados. Em tese, qualquer um deles pode deixar de ser em 30 dias. Porto Alegre é uma cidade que, fora o pôr do sol, tem como seu maior valor o imobiliário, as paisagens e as ambiências urbanas. Se a gente não cuidar muito bem disso, perderá um patrimônio cultural extremamente relevante — alerta a promotora.
O que estabelece a nova Lei dos Inventários (7/2018)
Critérios para inventariar:
A nova lei estabelece cinco instâncias para que se justifique a inclusão de imóvel no inventário de Porto Alegre. Os critérios em cada uma delas deverão ser fundamentados de maneira individual e detalhada. São elas: instância histórica ou simbólica (o que o imóvel representa no imaginário e no passado de Porto Alegre), morfológica (singularidade ou representatividade arquitetônica), técnica (avaliação quanto ao processo construtivo), paisagística (interação com o contexto urbano) e conjunto (aspecto de repetição do bem cultural, criando um conjunto de três ou mais edificações).
Estudo e prazos:
Caso um proprietário deseje ter seu imóvel incluído ou excluído do inventário, ele deve procurar a Equipe de Patrimônio Histórico e Cultural (Epahc), que terá 30 dias para se manifestar e emitir uma certidão. Ao fim desse prazo, o imóvel estará liberado para todos os efeitos da lei, cabendo reavaliação somente 48 meses depois. Havendo interesse em instaurar um procedimento de inventário, a Epahc realizará um estudo que deverá ser concluído no prazo de seis meses, prorrogáveis mediante fundamentação por mais seis meses. Se ao final dos seis ou 12 meses não houver decisão, o imóvel também estará liberado para efeitos da lei por 48 meses.
Compensação:
Os proprietários de imóveis inventariados poderão requerer incentivos a fim de assegurar-lhes a conservação ou restauração, como enquadramento em medidas de incentivo à cultura e Transferência do Potencial Construtivo (TPC) — esta, uma compensação financeira pelo que deixaria de ser construído em prol da manutenção de um prédio histórico.
Penalidades:
Para imóveis protegidos, a lei prevê multas por mutilação, destruição parcial ou demolição total, por intervenção física de natureza diversa sem autorização prévia, por deixar de realizar as obras de conservação, manutenção, prevenção e reparação do bem protegido, e por prestar informações falsas nos processos de licenciamento de obras e intervenções dos bens protegidos. As multas variam de 2% a 50% do valor venal do imóvel protegido.