Em meio a um quadro de lideranças que chegou a ser criticado, no começo da gestão Marchezan, pela falta de diversidade, a socióloga Vera Ponzio, 55 anos, é um ponto fora da curva. Ex-militante do movimento negro, a servidora de carreira que atua na Fundação de Assistência Social e Cidadania (Fasc) há mais de três décadas tornou-se a primeira mulher nessa posição a assumir a presidência da instituição.
— Estou sentindo muito orgulho, porque minha história é vinculada à esquerda. E nesse processo nunca houve, da parte do prefeito ou de auxiliares mais diretos, nenhum tipo de discriminação em relação a isso, pelo contrário. A gente foi construindo uma confiança e uma relação que fez com que eu chegasse até aqui — diz.
Natural de Porto Alegre, Vera atuava como diretora técnica da Fasc até a nomeação para a presidência, oficializada nesta quinta-feira (14) — desde 2017, o cargo era ocupado de forma interina por Joel Lovatto. Até o fim da atual gestão, sua meta será estreitar os laços da fundação com organizações da sociedade civil, trabalhando na construção de parcerias — em dezembro, foi lançado edital para os Centros Pop, e até o fim do primeiro semestre deve propor um modelo de albergues. Em sua sala na sede da Fasc, na Avenida Ipiranga, ela recebeu a reportagem de GaúchaZH. Veja os principais trechos da entrevista:
No início da gestão, quando foram montados os quadros de governo, a homogeneidade dos secretários e lideranças foi questionada por movimentos sociais. A sua nomeação destoa desse perfil. Como a senhora observa isso?
O desafio continua. Eu me vejo reconhecida dentro da gestão, a gente vem participando de varias reuniões com o primeiro escalão. E o fato de eu ser essa pessoa diferente nunca fez com que pudesse sofrer qualquer discriminação ou problema no sentido de sustentar nossas ideias, mas eu percebo que esse momento dá uma abrangência maior para a administração. São várias mulheres que estão à frente de departamentos, e mulheres que têm uma história. Agora a Comandante Nádia está assumindo a Secretaria de Desenvolvimento Social, que tem relação direta com a Fasc. Isso dá o tom também de que a diversidade e a pluralidade precisam fazer parte desse momento.
Qual é a situação financeira da Fasc?
É a situação financeira do município. É difícil, tem um déficit significativo. Não é muito diferente do que foi no passado, mas eu penso que alguns fluxos que se estabeleceram nos colocam numa condição melhor para enfrentar as adversidades: potencializar os recursos que se tem para evitar desperdício e criar mecanismos internos para cuidar do pouco que temos. A outra coisa é a apostar muito na parceria com as organizações da sociedade civil. Hoje nós temos 12 modalidades de serviço em parceria com a sociedade civil, que tem capacidade de resolver os problemas de maneira mais ágil e fazer coisas que, por vezes, a gente, no poder público, não consegue. A sociedade civil tem capacidade fazer levantamento de preço e adquirir materiais de qualidade com preço muito mais razoável. Nós vivemos isso em 2017, com o processo de parceria do acolhimento de crianças e adolescentes, e vimos a mudança que aconteceu na vida das crianças e no acolhimento institucional. Antes a Fasc fazia uma parceria compartilhada e executava a aquisição de materiais necessários à manutenção dos abrigos. Faltava veículos, telefonia, comida era insuficiente, problemas que foram apontados e divulgados, inclusive na Zero Hora. Com a parceria, repassamos o recurso integral e a organização aluga o imóvel, o veículo, a telefonia. A Fasc faz a gestão, o monitoramento e a avaliação do processo de trabalho. E consegue agir na metodologia técnica de maneira mais incisiva.
Existe algum tipo de parceria prevista para outras áreas?
Sim. Tivemos um edital lançado em dezembro para os Centro Pop, que são centros de referência para a população adulta em situação de rua. Hoje nós temos dois centros. Vamos fazer parceria para ampliar o número de serviços na cidade. Temos indivíduos na Zona Norte, na Zona Sul, que precisam vir para o Centro. Quanto mais perto de sua comunidade, mais condições temos de trabalhar para que voltem ao convívio da família. Não vamos ter uma empresa terceirizada para prestação de serviço, como temos hoje no Centro Pop I, mas uma organização que tenha uma missão institucional voltada para essa população, como parceira. Vamos manter a coordenação da Fasc. Na sequência queremos fazer para albergues e acolhimento de pessoas adultas.
Os albergues apresentam problemas de infraestrutura e falta de vagas. O que se tem no horizonte para resolver o problema?
Esses grandes espaços que temos na cidade geram, pela quantidade de pessoas acolhidas, um problema. Quanto menor o espaço, maior a condição de atender esse sujeito na sua singularidade, com a necessidade que ele traz. Com 120, 150 pessoas, tem uma dificuldade maior e uma concentração dos problemas. Temos vários perfis de pessoas que acionam os albergues. Acreditamos que, diminuindo o número de pessoas por casa — estamos trabalhando com a ideia de três serviços com 50 vagas cada — teríamos condição de atender com mais qualidade. A organização que venha a ser vencedora terá critérios técnicos colocados do que a gente quer que seja feito. Vamos fazer a fiscalização e a supervisão para que se consiga um resultado melhor ainda do que temos hoje.
Três serviços com 50 vagas é suficiente?
Nós teremos três serviços com 50, mais a rede conveniada, que é o Felipe Dihll e o Dias da Cruz. Mesmo no inverno, somente nos dias de muito rigor é que de fato acontece a lotação. Em geral sempre sobram vagas.
Qual tem sido o papel da Fasc no Plano de Enfrentamento à Situação de Rua?
A Fasc está no lugar em que sempre esteve. No lugar de coordenar, fazer a gestão das equipes da abordagem e realizar o trabalho social que lhe é pertinente. Já tivemos outros planos antes, mas a situação de rua das pessoas em Porto Alegre sempre foi muito demandada para a Fasc. Uma pesquisa realizada pela UFRGS em 2016 demonstrou que um percentual de mais de 60% das pessoas tinham problemas de saúde mental, algumas em decorrência do uso de substância psicoativa. Essas pessoas precisam ter uma retaguarda em saúde que até então não estavam tendo. Hoje temos a participação do Demhab, do Desenvolvimento Social, da Fasc, do Sine, sob a coordenação da Secretaria de Saúde. Isso nos dá tranquilidade, até para que a gente consiga fazer o trabalho que precisa ser feito, de ressignificação de laços com essa população. Foi importante, porque esses indivíduos que antes eram da conta da assistência passam a ser da conta da gestão, da conta da cidade.
No ano passado houve uma retirada de pessoas do Viaduto Otávio Rocha em uma ação da BM cuja abordagem destoou do que geralmente é proposto pela Fasc. Qual a avaliação da senhora sobre o caso?
Naquele momento da ação a gente recebeu com surpresa o que tinha acontecido. No entanto, as equipes apontavam dificuldades de fazer abordagens naquele local, pelas ameaças que sofriam. A gente conseguia identificar algumas pessoas com história de vida na rua e também algumas que estavam ali para outras finalidades, atividades ilícitas, que as próprias equipes trouxeram com preocupação. A partir de determinados horários, não era possível entrar ali. Hoje a gente tem atuado muito antes de haver uma aglomeração maior. Quando se tem a notícia de alguém numa praça, a gente procura acionar as equipes, a comunidade faz muito esse papel de ligar, solicitar abordagem, e a gente costuma dar retorno, para evitar esse tipo de situação como essa que vivemos no Viaduto Otávio Rocha. Mas há situações que estão relacionadas à segurança pública, como a Vila Planetário, onde as pessoas vão ali para o uso da droga. Então tem que separar a história de vida de um cidadão que, por vários motivos, acabou saindo de casa, se desvinculando dos familiares, daquele sujeito que vê uma oportunidade de cometer ato ilícito.
Há mais crianças na rua em Porto Alegre?
A pesquisa que baliza nossa atuação é essa da Ufrgs, de 2016. Ela apontou um número pequeno de crianças nessas situação. O que a gente vê é que, embora estejam na escola e nos espaços de convivência, há uma situação de trabalho infantil. E nesse aspecto precisamos aprimorar a forma, inclusive, de responsabilizar a família. A gente percebe que esse retorno do trabalho infantil pode estar relacionado com a flexibilização do controle e da fiscalização. Temos uma comissão, com o Ministério Público do Trabalho e outras secretarias, para poder agir nessas situações. Hoje tem alguns lugares marcados, como a Rua Fernandes Vieira e a Lima e Silva, de muito fluxo nos finais de semanas, onde vão para agregar recurso para a família. É uma consequência do aumento da pobreza, que aumenta a vulnerabilidade. Aumentando a vulnerabilidade, a busca por sobrevivência também é ampliada, e todos os indivíduos da família, de alguma forma, são convocados a assumir seu lugar nessa pirâmide. Temos que sensibilizar as famílias que têm alguns cuidados que precisam ser feitos, e que têm um tempo necessário para que essa criança possa se desenvolver, para pensarem alternativas que não sejam a ida para a mendicância ou para venda de balinha.
Qual é a sua meta à frente da Fasc?
O foco é a parceria com as organizações da sociedade civil, trazê-las para perto, poder ter a valorização do servidor, e trabalhar a questão do diálogo e da mediação. São coisas generalistas, mas é importante que sejam retomadas. Vamos trabalhar nessas perspectivas, focar na relação com o servidor e com a sociedade civil, e buscar parcerias com a iniciativa privada também. O poder público, da forma como está concebido, não vai conseguir resolver todos os problemas. Precisa ter (o envolvimento de) outras potências para que se consiga de fato melhorar os recursos e investir naquele sujeito que precisa. No que diz respeito a doações, incentivar que pessoas físicas e jurídicas possam destinar recursos direto para o Fundo da Criança e do Adolescente, e também para o Fundo do Idoso. Mas para a inciativa privada se sentir confiante, ela precisa ver que tem resultado. Queremos dar visibilidade ao trabalho que estamos fazendo para mostrar que o recurso, quando chega, faz diferença na vida das pessoas. É uma forma de poder dar uma virada nesse processo.