Serviços pagos sem qualquer fiscalização. Encontros com empresários para tratar pagamento de propina sobre o valor de contratos. Documentos falsos assinados como verdadeiros. Coação durante as investigações. Corrupção ativa. Corrupção passiva. Estes são alguns dos tópicos esmiuçados pela Polícia Civil na conclusão do primeiro inquérito sobre desvios no Departamento de Esgotos Pluviais, o extinto DEP.
A investigação, que trata do contrato para serviços de hidrojateamento e sucção em redes pluviais de Porto Alegre, foi aberta a partir da série de reportagens "Dinheiro pelo bueiro", de Zero Hora.
Dois ex-diretores do DEP — Tarso Boelter (PP) e Francisco Eduardo Mellos dos Santos (MDB) — estão indiciados por corrupção passiva e organização criminosa, entre outros crimes. Em depoimento, eles negaram ter recebido vantagens. Na última quinta-feira, Boelter foi empossado como diretor-geral da Câmara de Vereadores por indicação da vereadora Mônica Leal (PP), que assumiu a presidência da Casa.
Também foram enquadrados em crimes pela polícia três servidores (Paulo Guilherme Silva Barcellos da Silva, Rogério dos Santos Faccio e Ailton Verlei Montenegro), dois empresários (João Batista dos Santos Teixeira e Gilvani Dall Oglio) dois funcionários de empresa investigada (Antônio Marcos Pereira Martins e Carlos Alberto Guimarães). O trabalho foi feito em conjunto com a 6ª Promotoria Especializada Criminal de Porto Alegre. Inspeção do Tribunal de Contas do Estado (TCE) já concluiu que o pagamento por serviços não executados causaram prejuízo em torno de R$ 17 milhões ao erário municipal.
Em 160 páginas, o relatório do inquérito — enviado à Justiça em dezembro — registra confissões de quem pagou propina e de quem foi omisso permitindo que dinheiro público escoasse sem a contrapartida de serviços essenciais para o bom funcionamento da cidade. Os relatos revelam que planilhas de serviços supostamente executados eram forjadas para que o departamento pagasse valores a mais. Depois, esse excedente seria dividido entre os beneficiados pela propina — parte, inclusive, retornaria para empresários.
"Chico Mellos disse que os contratados precisavam ajudar Tarso Boelter, pois ele estaria precisando de dinheiro para se candidatar a vereador, sendo exigidos, inicialmente, valores integrais das parcelas do contrato que viriam a auferir com o DEP. E que as duas primeiras parcelas ajustaram com Chico Mellos que efetuariam o repasse de metade do valor da parcela estipulada no contrato. Caso não ocorressem os pagamentos, Chico Mellos ameaçava que impediria a empresa de trabalhar. O repasse sempre foi feito em dinheiro vivo", afirmou à polícia o empresário Gilvani Dall Oglio, gerente-geral da empresa Ambiental BR, que prestou serviços ao departamento.
Sobre a falta de controle do trabalho prestado por terceirizadas ao extinto DEP, hoje chamado de Coordenação de Águas Pluviais (CAP), o engenheiro Paulo Guilherme Silva Barcellos da Silva, servidor do quadro e ex-chefe da Divisão de Conservação, admitiu em depoimento: "O processo já vinha montado pra mim assinar, eu atestava os serviços e não contestava as medições. A minha principal preocupação era manter o meu cargo de chefe, de diretor, conseguir incorporar minha FG (função gratificada). Eu tava focado na minha carreira e na incorporação da minha FG, era isso que me motivava. Eu sabia que tinha irregularidades, eu deveria na verdade ter renunciado tudo, dito 'não quero participar de nada', mas, no final das contas, tu acaba fazendo parte do sistema".
O engenheiro centralizava a fiscalização de diversos contratos quando as suspeitas de serviços serem pagos sem terem sido executados foram reveladas por ZH, em julho de 2016. Um deles era o de hidrojateamento e sucção. A contratada para o trabalho era a JB Comércio e Serviços Ambientais. Enquanto apurava outra fraude no DEP — a da cobrança por limpeza de bueiros que nem existem e que envolvia a empresa JD Construções —, a reportagem descobriu que caminhões da Ambiental BR é que faziam o serviço da JB.
Questionado à época, o DEP disse desconhecer a situação. A investigação da Delegacia de Repressão aos Crimes Contra a Administração Pública e Ordem Tributária (Deat) revelou, porém, que a JB era uma espécie de fachada. Ela foi a empresa usada pela Ambiental BR, que estava com problemas de documentação, para concorrer na licitação do DEP. Em janeiro do ano passado, a Deat desencadeou a Operação Tormenta, fazendo buscas na sede da Ambiental BR. Ao coletar depoimentos de empresários e de servidores e analisar documentos apreendidos, a Deat começou a desvendar o esquema de corrupção que existiria dentro do DEP.
Para o delegado Max Otto Ritter, a apuração "revelou fatos graves e provas de corrupção e de peculato (apropriação e desvio de dinheiro público por agentes públicos), com nítida divisão de tarefas entre a diretoria do DEP, servidores e empresários até a gestão de 2016. Tudo isso corrobora os desvios milionários apontados pelo TCE e pelos próprios interventores do DEP".
A polícia não revela detalhes, mas garante ter mais elementos que fortalecem as confissões da prática de corrupção nos contratos do DEP. Depoimentos de investigados também revelam que a prática de cobrança de propina não era exceção no DEP e envolveu mais contratos. Além do inquérito concluído nesta etapa dos trabalhos, há outros tramitando em parceria com o Ministério Público em relação a mais empresas, empresários e servidores. Nos depoimentos surgiram ainda informações sobre pagamento de propina a outras prefeituras.
Os investigados
Núcleo do extinto DEP
Tarso Roveda Boelter (PP)
Diretor-geral do DEP entre 2013 e março de 2016. Saiu do departamento para concorrer a vereador. Quando as suspeitas de irregularidades vieram à tona, em julho de 2016, afirmou que desconhecia os fatos. Indiciado por peculato, corrupção passiva, falsidade ideológica, uso de documento falso e organização criminosa.
Francisco Eduardo Mellos dos Santos (MDB)
Diretor-adjunto do DEP entre 2013 e 2016. Era temido por servidores. Chegou a ser visto com arma dentro do DEP e a sala que ocupava e onde costumava receber empresários tinha os vidros protegidos por película escura. Pediu afastamento depois de reveladas suspeitas de irregularidades no órgão. Indiciado por peculato, corrupção passiva, falsidade ideológica, uso de documento falso e organização criminosa.
Paulo Guilherme Silva Barcellos da Silva
Engenheiro do quadro, como chefe da Divisão de Conservação era responsável pela fiscalização de vários contratos sob suspeita. Disse à polícia que sabia das irregularidades, mas não as denunciou porque queria manter o cargo de direção. Foi indiciado por peculato, corrupção passiva, falsidade ideológica, uso de documento falso e organização criminosa.
Rogério dos Santos Faccio
Servidor do quadro, ex-chefe da seção Centro do DEP, foi responsável por atestar serviços descritos em planilhas produzidas com dados falsos. Indiciado por peculato, falsidade ideológica, uso de documento falso e organização criminosa.
Ailton Verlei Montenegro
Servidor, ex-chefe da seção Norte do DEP, pediu aposentadoria depois de as investigações começarem. Foi indiciado por peculato, falsidade ideológica, uso de documento falso e organização criminosa.
Núcleo empresarial
Gilvani Dall Oglio
Empresário, gerente-geral da Ambiental BR. Admitiu que pagou propina para manter contrato com DEP. Indiciado por corrupção ativa, falsidade ideológica, uso de documento falso, fraude em licitação e organização criminosa.
João Batista dos Santos Teixeira
Dono da empresa JB Comércio e Serviços Ambientais à época, que foi usada pela Ambiental BR para vencer licitação junto ao DEP. Admitiu que entregou dinheiro ao então diretor-adjunto do DEP e que conseguiu empregar familiares no departamento. Indiciado por corrupção ativa, por uso de violência ou grave ameaça com o fim de favorecer interesse próprio ou alheio, falsidade ideológica, uso de documento falso, fraude em licitação e organização criminosa.
Antônio Marcos Pereira Martins
Funcionário da Ambiental BR, admitiu ter presenciado entrega de propina a Mellos e que Mellos enviava planilhas de serviços prontas. Indiciado por corrupção ativa, por uso de violência ou grave ameaça com o fim de favorecer interesse próprio ou alheio, por falsidade ideológica, por uso de documento falso, por fraude em licitação e organização criminosa.
Carlos Alberto Guimarães
Funcionário da Ambiental BR, foi o representante legal da JB na licitação com o DEP. Disse à polícia que sabia da propina, que essa era uma condição para a empresa trabalhar. Indiciado por corrupção ativa, falsidade ideológica, por uso de documento falso, por fraude em licitação e por organização criminosa.
Contrapontos
O que disse Tarso Roveda Boelter:
“Desconheço esses fatos. Vou aguardar para ter conhecimento do inquérito”.
O que disse Rafael Coelho Leal, advogado de Francisco Eduardo Mellos dos Santos:
GaúchaZH deixou recado, mas não obteve retorno.
O que disse Paulo Guilherme Silva Barcellos da Silva:
GaúchaZH deixou recado, mas não obteve retorno.
O que disse Rogério dos Santos Faccio:
"Não vou me manifestar porque não conheço o resultado do inquérito".
O que disse Ailton Verlei Montenegro:
GaúchaZH deixou recado com a esposa dele, mas não obteve retorno.
O que disse Gilvani Dall Oglio:
Continuo à disposição para ajudar nas informações necessárias. Minha única colocação é nessa questão pública, que a gente não consegue trabalhar digno. Não é certo aderir (à esquema de corrupção), mas a gente é obrigado a entrar. Dou apoio às apurações e acho que não deve ficar só no DEP. A população não merece perder dessa forma.
O que disse Raul Menezes, advogado de João Batista dos Santos Teixeira:
"Só vamos nos manifestar depois de ter acesso à conclusão do inquérito".
O que disse Raul Menezes, advogado de Antônio Marcos Pereira Martins:
"Só vamos nos manifestar depois de ter acesso à conclusão do inquérito".
O que disse Carlos Alberto Guimarães:
GaúchaZH deixou recado, mas não obteve retorno.
Série de reportagens provocou abertura de investigações
A série "Dinheiro pelo Bueiro", publicada por Zero Hora em julho de 2016, revelou suspeitas de que empresas terceirizadas recebiam do então Departamento Estadual de Esgotos (DEP) por serviços não executados.
O principal caso noticiado envolvia o contrato de limpeza de bueiros. ZH mostrou que a empresa JD Construções declarava ter limpado mais bueiros do que os que existiam nas ruas e, com isso, recebia valores superfaturados.
No mesmo dia da revelação, a direção do DEP pediu afastamento. O diretor-adjunto à época era Francisco Eduardo Mellos dos Santos (MDB). O então prefeito José Fortunati determinou abertura imediata de apuração interna e colocou o DEP sob intervenção. A Polícia Civil abriu inquérito, o Ministério Público instaurou procedimentos e o Ministério Público de Contas representou ao TCE solicitando abertura de inspeção especial no órgão municipal. A apuração interna da prefeitura concluiu que mais 15 contratos do DEP também tinham irregularidades.
Além da falta de fiscalização dos serviços declarados, um dos principais problemas detectados se referia à realização de serviços fora do objeto contratado, mas que eram cobrados como trabalho relacionado ao contrato. Em depoimento, representantes de empresas investigadas revelaram que recebiam ordens da direção-geral do departamento para fazer serviços não previstos no objeto do contrato e que tinham autorização para cobrá-los como se fossem parte do contrato que mantinham com o DEP. O nome mais citado à época pelas testemunhas como responsável pelas ordens foi o de Mellos. Um empresário contou, por exemplo, que teve que trocar pneus de uma retroescavadeira. Depois, cobrou o serviço declarando uso de materiais em uma obra fictícia.
Em 2017, o Grupo de Investigação da RBS fez nova reportagem, desta vez mostrando problemas na prestação de serviços pela Cooperativa dos Trabalhadores Autônomos das Vilas de Porto Alegre, a Cootravipa. Ao monitorar o trabalho de equipes da Cootravipa, ZH verificou atrasos, número de funcionários inferior ao contratado, falta de equipamentos de proteção individual, baixa produtividade no serviço nas ruas e também falta de fiscalização. Em um dos casos, ZH flagrou equipe da cooperativa fazendo um frete particular em horário de expediente e com caminhão pago para estar a serviço da prefeitura.
Apurações abertas desde 2016 ainda tramitam. Na prefeitura, seguem sendo feitos nove inquéritos administrativos disciplinares contra seis servidores. A prefeitura também ingressou com duas ações judiciais contra empresas: uma por improbidade e uma para cobrar a execução de um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC). Neste TAC, a empresa que superfaturava serviços de limpeza de bueiros acertou devolver ao erário R$ 4,9 milhões.