O sol se esguiava, ainda tímido, por de trás dos prédios do Centro Histórico. Não estava alto o suficiente para lançar seus raios luminosos no Largo Glênio Peres. Mesmo assim, pontos de cor amarela já pipocavam pelo local, na forma de guarda-sóis.
Até fevereiro de 2009, essa cena era comum. Acontecia diariamente, estivesse o céu limpo ou com um temporal prestes a descambar. Quem chegava ao Centro, já estava acostumado a ver os guarda-sóis amarelos e as lonas alaranjadas num emaranhado que tomava conta da área ao lado da Praça XV. Formava-se ali, toda manhã, o improvisado Camelódromo de Porto Alegre.
— Vendendo na rua, tu imaginas que o mundo é teu. Só hoje eu vejo como a gente sofria naquele lugar — recorda a ex-camelô Eva Maria de Vargas, 56 anos.
Atualmente, ela integra o corpo de 800 lojas que ocupam os 20 mil metros quadrados do Centro Popular de Compras da Capital — conhecido como Pop Center. Além do comércio varejista, o empreendimento conta com estacionamento, restaurantes, agência bancária e farmácia. O local geral 4 mil empregos diretos e indiretos. Mensalmente, 1,5 milhão de pessoal passam pelo Pop Center.
Como muitos colegas com quem dividia espaço na Praça XV, Eva trocou a vida de ambulante pela de lojista. Trocou a lona pelo concreto. Trocou a incerteza pela segurança. E essa mudança, que simbolizou o fim do camelódromo de Porto Alegre e o surgimento do Pop Center, está completando 10 anos no próximo dia 9 de fevereiro.
— A troca de lugar resgatou o ser humano que existia dentro da cada ambulante. Durante estes anos em que eles estão aqui, sempre trabalhamos para valorizá-los e mostrar a importância de trabalhar legalmente, sem estar na rua — conta Elaine Deboni, diretora institucional do Pop Center.
Início complicado
Quem vê os comerciantes hoje instalados no complexo na Avenida Júlio de Castilhos, talvez não lembre, ou até desconheça, a conturbada transição dos arredores da Praça XV para o ponto atual. Como recorda a diretora institucional do Pop Center, o período de adaptação foi de trabalho árduo.
O principal problema, segundo alguns dos comerciantes e a própria diretora, era o aceite do pagamento do aluguel. Diferentemente de quando ocupavam o espaço ao ar livre, ao se mudarem para o Centro Popular de Compras, os então camelôs tiveram que pagar pelo espaço ocupado.
— E ainda tinha uma parte mais complicada: a mudança era uma imposição. Apesar de haver o diálogo com os comerciantes, não havia chance de eles permanecerem na rua. Então, muitos vieram contrariados. Até que entendessem como a mudança seria melhor para eles, foi trabalhoso — explica Elaine.
Responsável por uma das várias lojas de aparelhos eletrônicos do shopping popular, Sérgio Petró, 60 anos, entendeu a importância de se estabelecer em um local fixo:
— Aquilo na Praça XV não era vida. Montávamos e desmontávamos as bancas todo dia. Estávamos expostos, inseguros. Hoje, até para fazermos as compras é melhor. Temos melhores linhas de crédito, criamos uma marca forte no mercado.
Os brincos da multiplicação
Enquanto ficava plantado na porta de uma agência bancária da Rua da Praia, em meados dos anos 1960, Anibal Lima de Oliveira, 68 anos, observava atento ao movimento dos ambulantes que trabalhavam na via. O então segurança de banco se questionava sobre o quão lucrativo era o serviço daquelas pessoas:
— Sempre quis ter mais, não me acomodava. Além disso, o trabalho no banco não pagava muito bem.
Certo dia, Anibal comprou dois pares de brincos de um ambulante qualquer. Decidiu que iria vendê-los. Não passou muito trabalho para chegar ao objetivo. Com o dinheiro da venda, adquiriu outros sete pares da joia. Logo também os vendeu.
— Trabalhava no banco de dia, depois ia para a calçada vender. Quando vi, estava trabalhando 12 horas por dia. Dos brincos, passei a vender bolsas e vestuários, ramo no qual sigo até hoje — conta Anibal.
Logo o segurança deixou o banco, concluiu que seu cofre não encheria com o trabalho na agência. As calçadas trariam mais lucro. O ciclo havia começado. Hoje, está perto do fim. Anibal quer mudar a rotina que repete há décadas: acordar às cinco da manhã, deslocar do bairro Morro Santana, na Zona Norte, até o Centro e ler os principais jornais da cidade, enquanto organiza a loja para abrir.
— Estou ajeitando tudo para minha neta tocar o negócio. Em todos estes anos, sempre trabalhei com familiares. Então, eles é que vão seguir o negócio. Tenho uma filha que está doente, quero descansar e ficar junto com ela — conta ele sobre Sandra de Oliveira Lima, 43 anos, a filha que "ajudou nas vendas desde o nascimento".
Atualmente, Sandra aguarda um transplante de rim. Ela perdeu os dois órgãos e sobrevive com a ajuda de hemodiálise.
Moldando o futuro
Eva Maria de Vargas, 56 anos, perdeu o pai cedo. A mãe, viúva, precisava cuidar dela e de outras três irmãs. Diante do cenário, Eva achou que era hora de trabalhar para ajudar em casa — mesmo tendo apenas 13 anos. Assim, desgarrou do bairro Cristal, na Zona Sul, onde vive até hoje, para achar uma função que desse dinheiro.
Como era comum na época, encontrou trabalho no Centro Histórico. Ou melhor, fez seu trabalho. Comprava molduras e alguns tecidos e telas com pinturas. Assim, montava quadros e os vendia no Centro. Por cerca de quatro anos, isso lhe ajudou no sustento da família.
Depois, uma forte onda de frio que atingia a Porto Alegre dos 1970 fez Eva deixar de lado os quadros e molduras. Logo, encontrou o caminho dos atacados e começou a comprar luvas e roupas de frio para vender pelas ruas do Centro. Trabalhou em várias ruas e avenidas, como Marechal Deodoro, Voluntários da Pátria e Vigário José Inácio — depois ganhou o ponto na Praça XV. Hoje, ocupa três espaços no Pop Center, onde vende roupas esportivas.
— Viajo sempre para trazer coisas novas para vender aqui. É importante buscar esses produtos, atrai novos clientes — revela Eva, que divide o trabalho com uma irmã e uma filha.
Puxadinho virou referência
Michele Amorim, 32 anos, não faz parte do hall de vendedores que se criou nas ruas da Capital. Ela e o marido, Roberto Amorim, 39 anos, começaram a trabalhar já na era Pop Center. Iniciaram em uma espécie de "puxadinho", usando um espaço cedido por uma amiga dentro de outra loja do local. Vendiam alguns equipamentos eletrônicos. O negócio foi tomando corpo e logo o pedido feito à prefeitura foi aceito. Michele e Roberto ganharam uma banca para trabalhar. Entretanto, a clientela só aumentava, e mais uma vez foi necessário mudar.
— Hoje, temos duas lojas, uma na entrada do Pop Center, lá no primeiro andar. E outra aqui no terceiro, com foco mais em manutenção. Graças ao nosso bom trabalho em assistência técnica, conquistamos muitos clientes também pela internet, viramos referência — diz Michele, que atende gente de todo o Estado e até de Santa Catarina.
Além dela e do marido, a mãe, Elizabete Laurindo, 52 anos, e o irmão, Douglas Laurindo, 26 anos, também tocam a loja, que ainda gera emprego para mais 20 pessoas.
Mudança nas carreiras
Em 1986, enquanto brilhava jogando como ponta de lança em um time da Tailândia — depois de uma passagem pelo Japão —, Sérgio Petró nem imaginava que teria de abandonar os gramados. Entretanto, uma lesão no joelho o fez retornar a Porto Alegre no ano seguinte. Aposentado do futebol precocemente, aos 27 anos, precisou "correr atrás do tempo perdido". Casou e teve dois filhos. Sua sogra era a ambulante mais antiga do camelódromo da Capital, recorda Sérgio. No emaranhado de lonas da Praça XV, ocupava a banca A01.
— Quando ela faleceu, eu e minha esposa seguimos tocando o negócio. Mudamos aos poucos, dos vestuários que ela vendia, passamos ao ramo dos eletrônicos, que foi crescendo com o início dos anos 2000 — conta Sérgio.
A mudança para o Pop Center auxiliou não somente no estabelecimento de um local seguro para trabalhar, mas na construção da vida dos filhos, por exemplo. Fernando Oliveira, 33 anos, cursou Educação Física, ama esportes, como o pai, ex-futebolista. O mais novo, Alexandre Miguel, 26 anos, formou-se engenheiro civil.
— Tudo que temos hoje veio da rua e do Pop Center. É o fruto do nosso esforço de décadas, de geração para geração — diz Sérgio.
Educação
O ensino de qualidade para as filhas também guia as vendas na loja de Gilberto de Araújo, 49 anos. O local é referência na venda de roupas jeans femininas. O ramo do vestuário faz parte da vida dele desde os anos 1990. Operador de som em uma rádio na região central da cidade, ela passava por ambulantes na Rua da Praia diariamente durante seu horário de intervalo. A curiosidade logo fez ele criar amizades com os vendedores. Quando se deu conta, já fazia parte da classe, largou as ondas do rádio e foi vender roupas.
Circulou por alguns pontos até ganhar sua banca na Praça XV, em 1996. Hoje, tem orgulho das quatro lojas que ocupa no Pop Center. E, por isso, aponta a chance de poder custear a educação das duas filhas em uma escola privada como fruto do esforço nas ruas e no shopping popular:
— O nosso trabalho era marginalizado quando trabalhávamos nas ruas. Depois, quando viemos para cá, a sociedade começou a aceitar mais. Hoje, tenho uma base fiel de clientes.