Com a confirmação do governo do Estado, na semana passada, de que o terreno às margens da Avenida Ipiranga com a Rua Silva Só, no bairro Santa Cecília, será cedido à iniciativa privada como moeda de troca para a construção de um presídio na Região Metropolitana, Porto Alegre se despede de um pedaço de sua história.
Pedaço, nesse caso, literalmente. Em ruínas desde um temporal em outubro de 2017, o Ginásio da Brigada Militar foi o marco de uma era que guarda semelhanças e diferenças com a Capital da atualidade. Semelhança na forma reticente como o porto-alegrense sempre recebeu as ideias de empreendimentos e eventos, que contrasta com a animação com que os abraça tão logo eles são inaugurados. Diferença, sobretudo, pela rapidez das construções naquela época.
Se neste mês o poder público completou um ano diante dos escombros, é surpreendente saber que, em 1963, o ginásio foi construído em apenas 92 dias, sob coordenação do engenheiro Augusto de Araújo Guarita. O terreno do Corpo de Bombeiros foi cedido em 1962, final do governo Leonel Brizola, para a realização dos Jogos Mundiais Universitários, a Universíade. A escolha da modesta capital gaúcha como sede de um evento esportivo mundial surpreendeu os próprios porto-alegrenses, trazendo, em um primeiro momento, mais preocupação do que comemoração. Como conta o ex-atleta e ex-treinador de basquete Cleomar Lima:
— Foi uma aventura do pessoal da Furge (Fundação Universitária Gaúcha de Esportes) propor os Jogos em Porto Alegre quando eles souberam que a federação internacional escolhera realizar o evento no Brasil, pela primeira vez fora da Europa. Eles venderam ao pessoal a ideia de que Porto Alegre era uma cidade com boa estrutura náutica, um estádio olímpico (o Olímpico Monumental, inaugurado em 1954) e uma série de clubes esportivos privados dispostos a abraçar a ideia — relata o ex-atleta.
Porto Alegre, a "cidade sorriso"
Um artigo de 2012 da Kineses, revista acadêmica da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM) sobre a Universíade também atribui a escolha inusitada de Porto Alegre à desistência de São Paulo, que preferiu centrar esforços na organização do Pan-Americano daquele ano. Porto Alegre competiu com Belo Horizonte e venceu graças ao lobby da Furge, que vendeu a capital gaúcha como uma acolhedora "cidade sorriso", de boa estrutura, que se voltaria completamente aos Jogos, diferentemente de metrópoles maiores.
Para se ter uma ideia do feito, somente uma vez depois a Universíade voltou a ser realizada na América Latina (em 1979, na gigantesca Cidade do México). Sua próxima edição, em 2019, será em Nápoles. Da empreitada, o principal legado foi o ginásio para até 15 mil pessoas que, se não era exatamente belo em sua arquitetura, se tornou imediatamente uma das principais estruturas poliesportivas do sul do país. Sua existência contribuiria para o processo de expansão e "descentralização" da cidade.
— A partir daquele evento, sobretudo no final da década e no início da seguinte, a região (do bairro Santa Cecília) passaria por uma série de melhorias urbanas. É um eixo de uma via que vinha sendo construído desde a década de 1940, a Avenida Ipiranga, se tornando uma espécie de pré-perimetral que vai dar toda uma dinamicidade à região no sentido de desafogar a circulação pelo Centro. A grosso modo, foi por ali que a Zona Sul passou a acessar a Zona Norte sem passar pelo Centro, pela Protásio Alves ou pela Bento Gonçalves — conta Charles Monteiro, professor do curso de História da PUCRS.
Além da contribuição para o desenvolvimento urbanístico, ter à disposição um estádio "de uma boa envergadura", conforme Monteiro, contagiou a comunidade local, que abraçou o espaço. Já cedido à administração da Brigada Militar, o ginásio passou a receber competições de esporte amador, campeonatos escolares, shows e todo tipo de eventos. Em 1968, por ocasião do segundo aniversário de Zero Hora, o ginásio lotou para receber um show com os principais nomes da Jovem Guarda que, à época, viajavam juntos em turnê: Roberto Carlos, Erasmo Carlos, Wanderléa e Jerry Adriani, entre outros.
"Ringue Doze"
Porém, no quesito curiosidade, nenhuma atração que passou pelo ginásio da Brigada Militar compete com o Ringue Doze, espetáculo de luta-livre encenada por personagens mocinhos, como Ted Boy Marino, contra bandidos, como o pirata Barba Roja, com narração de rádio e transmissão ao vivo para a TV Gaúcha. Os atletas/atores eram quase todos uruguaios, paraguaios e argentinos prospectados para fazer fama em terras gaúchas. Com arquibancadas lotadas, ele foi ao ar entre 1964 e 1969, sempre ao vivo nos domingos à noite.
Segundo Ary dos Santos, diretor da atração, em entrevista em 2009 ao caderno Cultura, de Zero Hora, a atração teve um fim sem decadência. Terminou pela falta de renovação de atletas, o que levou os organizadores a pausar a atração para buscar um novo elenco. Porém, em 1973, a estreia do Fantástico como grande atração dominical sepultou de vez a ideia de retorno à TV. O ginásio, conforme apareceram novas opções tanto para eventos esportivos quanto culturais, também rumou ao ocaso a partir da década de 1990, se limitando a eventos menos glamourosos, como formaturas militares, plenárias sindicais e simulados de vestibular.
Relembrar o Ringue Doze ou a Universíade foram algumas das muitas vezes em que o Ginásio da Brigada foi parar na coluna Almanaque Gaúcho, assinada por Ricardo Chaves, o Kadão, em ZH. Um dos aspectos do estádio chamava particular atenção do colunista.
— Aquela chaminé enorme voltada para a Avenida Ipiranga, que denunciava uma churrasqueira ali! Bom, em uma terra em que até motel tem churrasqueira, dá para dizer que é curioso, mas surpreendente não é, certo? (risos) Portanto, não creio que seja uma perda arquitetônica das mais significativas para a cidade. Já para a memória afetiva dela, sem dúvida — conclui Kadão.