O feminismo se infiltrou entre os mais de 350 piquetes montados no Acampamento Farroupilha, em Porto Alegre.
Desafiando o proverbial machismo do meio tradicionalista, o movimento está representado no parque pelo Piquete das Gurias, onde quem manda são as mulheres e em que, se quiserem participar, os homens têm de dividir as tarefas. Em lugar de patrão, há uma patroa, a engenheira mecânica Iara da Rosa, 63 anos, que dirige o galpão com ajuda da sua esposa, a jornalista Rose Castilhos, de 58 anos.
A criação do piquete — que está ligado à Associação Beneficente Ilê Mulher, dedicada a defender os direitos das mulheres e dos moradores de rua — foi ideia de Iara. Apesar de não se definir como tradicionalista e de não usar qualquer tipo de adereço ou indumentária típica, ela achou importante levar a pauta feminista para dentro do acampamento. Já são 14 anos de presença no Parque Maurício Sirotsky Sobrinho.
— Este é, quase na totalidade, um espaço masculino e machista. E é exatamente por isso, porque o tradicionalismo é um dos ambientes mais associados ao machismo, que viemos. Foi um desafio. Entendemos que o lugar da mulher é onde ela quiser estar. Mas não viemos para o enfrentamento, e sim para construir um novo paradigma. No início, sentimos certa resistência. Hoje somos respeitadas, mas ainda temos muito que caminhar até sermos consideradas iguais. Não podemos ter a ilusão de que o tradicionalismo de raiz quer dar mais espaço para as mulheres. Existe primeira prenda, uma ou outra patroa de CTG, mas na hora do pega para capar, quem manda é o homem — afirma Iara.
O Piquete das Gurias está cercado de peculiaridades. Muitas das atividades culturais envolvem debates sobre o feminismo e o empoderamento feminino. Também é comum que o galpão seja visitado por mulheres vítimas de violência atendidas em um abrigo administrado pela Associação Ilê em Canoas (a entidade tem outro abrigo em Porto Alegre, mas não traz essas mulheres ao parque por receio de que os agressores possam também andar por lá). Como no resto da sociedade, o assédio é uma preocupação no piquete: às vezes o galpão está tomado apenas por mulheres, e algum passante faz comentários inapropriados. Uma das brigas de Iara, no início, era garantir localização em um ponto movimentado, por motivos de segurança.
O piquete também se notabilizou, anos atrás, por uma mobilização contra músicas de teor machista que eram reproduzidas no acampamento. Em uma delas, o cantor dizia que ia ao médico para consertar a esposa, porque ela estava estragada: só paria filhas. O grupo percorreu as ruelas poeirentas, visitando piquete por piquete, para promover uma conscientização.
— Não sei se todo o acampamento parou de tocar aquelas músicas, mas, pelo menos ao redor de nós, pararam — conta Rose, coordenadora do Ilê.
Iara assinala outras singularidades do Piquete das Gurias. Para começar, claro, é um dos raros onde o patrão é do sexo feminino. Mas também quebra o modelo de mulheres na cozinha e homens na churrasqueira. Em geral, quem faz o churrasco no espaço são as mulheres.
No início, os homens eram raros, mas hoje são presença constante. Na tarde deste domingo, quando o acampamento superlotou de visitantes e uma névoa com cheiro de churrasco pairou por horas sobre o parque, o comerciante Sílvio Rivero, 37 anos, petiscava pedaços de carne assada no baluarte feminista. Amante de tradicionalismo, ele elegeu o Piquete das Gurias como seu espaço preferencial.
— O projeto é espetacular. As mulheres têm muita importância na cultura gaúcha, são guerreiras. A diferença deste piquete são os direitos iguais. Aqui temos tarefas, ajudamos a lavar a louça. No início, havia preconceito, os caras diziam: "É bem a tua cara, ir no Piquete das Gurias". Hoje respeitam — afirma Sílvio.
Um casal há 17 anos, Iara e Rose oficializaram o matrimônio no ano passado. Não escondem o relacionamento, mas também não fazem alarde, por entenderem que se deve levantar uma bandeira de cada vez, e a prioridade agora é o feminismo. Ainda assim, sua sexualidade é outro desafio a setores do tradicionalismo, que não lidam bem com a homossexualidade. Quatro anos atrás, para pinçar um exempplo, virou notícia nacional a polêmica em torno de um CTG de Santana do Livramento que havia aceitado sediar uma cerimônia de casamento gay. A iniciativa causou revolta em entidades gauchescas, e o CTG acabou incendiado antes do evento.
— É um ambiente homofóbico. Esses dias, em um piquete aqui ao lado, dois rapazes começaram a dançar. Um homem ameaçou: "Vou pegar um martelo e bater na cabeça de vocês" — relata Iara.