Apaixonada pelo Carnaval de rua de Porto Alegre desde o nascimento do bloco Maria do Bairro, há 11 anos, a atriz Carla Cassapo, 46 anos, não hesitou em passar purpurina e se jogar na multidão que tomou a Rua Sofia Veloso no último final de semana. Entre uma marchinha e outra, foi abordada por um homem, que fingia conhecê-la. Não bastasse o xaveco batido e o bafo de bebida, ele insistiu diante da negativa de Carla e tentou agarrá-la. Foi quando, afastando o sujeito com a mão, a atriz disse a frase que tem potencial para ser o grande lema do Carnaval em 2018:
— Não é não!
Depois de um ano marcado por denúncias que abalaram Hollywood e se disseminaram por diversas esferas, campanhas contra o assédio estão se multiplicando também durante o Carnaval. No evento conhecido pela "pegação" e por investidas nem sempre respeitosas, a sentença de Carla é cada vez mais repetida. Inclusive está sendo marcada na pele de muitas mulheres — caso das atrizes Leandra Leal e Mariana Ximenes e da apresentadora e cineasta Marina Person, que postaram no Instagram fotos com tatuagens temporárias.
O "não é não" de Carla Cassapo para o folião da Cidade Baixa foi respondido com um "tá bom, tá bom". Pelo menos na segunda tentativa, a voz dela foi ouvida. A atriz já perdeu as contas de quantas vezes lhe puxaram pelo braço para tentar alguma aproximação forçada. Não acha mais isso aceitável.
É algo com o qual cheguei a me habituar, mas hoje não tolero mais. Muito graças aos movimentos feministas
CARLA CASSAPO
Atriz
Além do gosto pelo Carnaval, a hoteleira Daiane Cardoso, 32 anos, a auxiliar administrativa Siliane Fernandes Lima, 47 anos, e a analista Daiane de Souza Roman, 33 anos, também compartilham com Carla o fato de já terem sido assediadas durante a festividade. Cardoso foi beijada a força no ano passado, Siliane viu seu top sendo puxado para baixo por um homem e Daiane Roman lembra que já passaram a mão na sua bunda no meio da multidão.
A boa nova é que Carnaval de 2018 chegou com um clima mais respeitoso para elas — pelo menos por enquanto. Nos blocos que saíram, não passaram por abordagens insolentes.
Para Siliane, mais conhecida como Cibba, casos de grande visibilidade — como do produtor americano Harvey Weinstein e do ator Kevin Spacey — acabam fazendo as "anteninhas se ligarem". Até porque o tribunal para casos de assédio está ficando cada vez mais rigoroso.
— Isso está na mídia, e vem um certo receio. Daqui a pouco alguém denuncia, um outro tira foto, e depois não há argumento — ressalta Siliane.
Daiane Cardoso também acredita que, quando o assunto é pegação, há uma mudança em curso, que ocorre de forma gradativa. Tanto por parte das mulheres — que se antes ficavam quietas, hoje já se sentem mais confiantes para "fazer um barracão" — quanto por parte dos homens.
— Vejo amigos que há dez anos tinham comportamento machista e hoje não têm mais. Acredito que quanto mais se fala sobre o assunto, mais as pessoas vão se questionar sobre suas atitudes — diz ela.
O gestor empresarial Eduardo Lopes Gerhardt, 36 anos, instrumentista do bloco Turucutá, também acredita que a mudança de hábitos masculinos vai ser consequência desse debate — embora mais devagar do que deveria, na avaliação dele. Conta que os limites para abordar uma mulher já entraram na pauta do seu grupo de amigos, mas acredita que a desconstrução do machismo ainda tem um longo caminho pela frente. E um dos gargalos está na preocupação com "o que os outros vão achar". Para ele, tem homem que acha que vai ser zoado no seu grupo de amigos se não "pegar" ninguém.
Que bom que "está chato". Pelo menos é um mundo que não oprime mais mulher que sai de shortinho.
EDUARDO LOPES GERHARDT
Integrante do bloco Turucutá
Já Leandro Machado Hertzog, 36 anos, também frequentador do Carnaval de rua da Capital, não vê mudanças no clima da festividade por enquanto. Acredita que segue sendo uma data muito aproveitada para gerar uma aproximação com o sexo oposto. Para ele, bom senso é algo que nunca deu para descartar.
— A aproximação ocorre através da troca de olhares, mas tem que depender de ambos. Vendo que a outra pessoa não quer, você acaba saindo. É uma coisa natural — descreve.
A designer gráfica Júlia Teles, 33 anos, integrante do Não Mexe Comigo que Eu Não Ando Só, resume os limites da azaração com um ditado popular:
— A tua liberdade termina onde começa a do outro. É importante estar dentro dos limites do respeito, independente de ser homem, mulher, trans, o que for.
Campanhas reforçam o combate ao assédio
"Não é não" é o mote de boa parte das campanhas focadas no Carnaval 2018. O novo hit da Anitta ganhou uma versão feminista, feito pelo canal É Cena, com o refrão: "Vai malandro, o assédio começa depois do não". Na campanha "Respeita as Mina. É simples", a ONU Mulheres, com o suporte do Comitê Nacional Impulsor ElesPorElas HeForShe, é ainda mais didática. "Quando a mulher diz não para você, significa que ela diz não para você", diz uma das peças.
Para a filósofa Marcia Tiburi, a necessidade de as mulheres repetirem isso pode ser uma prova de precariedade cognitiva e ética dos homens.
— Esse fazer-se de desentendido é sempre ruim: o assediador age como se a vítima não estivesse falando sério, como se estivesse enganando ao encenar um não que na verdade seria um sim — avalia.
Os homens que não entendem um não se tornam infantis, no mau sentido, mas tentam sempre parecer donos de um direito que não é seu
MARCIA TIBURI
Filósofa
Relatos de puxão de cabelo ou no braço ou tentativas de beijar à força no Carnaval da Capital já foram reunidos em campanha encabeçada pela organização Minha Porto Alegre neste ano, além de um caso do golpe Boa Noite Cinderela — com essa última vítima, foi intermediado o encaminhamento à polícia. Carolina Soares, 30 anos, diretora da Minha Porto Alegre, afirma que o objetivo da iniciativa é formular relatórios com as incidências para repassar a autoridades. Ela é realizada também em cidades como Recife, São Paulo, Rio de Janeiro e João Pessoa.
— É necessário pensar em soluções para que nenhuma mulher deixe de pular Carnaval do jeito que quer porque vai ter algum homem assediando — destaca.
Carolina acredita que não há políticas públicas direcionadas a assédio durante o Carnaval. O governo federal divulgou que apenas em quatro dias do Carnaval no ano passado, a Central de Atendimento à Mulher — Ligue 180 registrou 2.132 atendimentos a mulheres vítimas de diversos tipos de agressão. Os atendimentos relativos a relatos de violência sexual tiveram um aumento de 87,93%, quando comparado com o Carnaval de 2016 — de 58 atendimentos o número pulou para 109.
Os blocos de Porto Alegre também investem em discurso contra a violência. Zeca Brito, carnavalesco do Maria do Bairro, lembra que o bloco tirou do repertório as cantigas consideradas machistas ou com qualquer tipo de preconceito. No final de janeiro, o Bloco da Laje interrompeu a apresentação por alguns minutos para condenar um fato relatado à organização: duas mulheres teriam sido agredidas por um homem. O bloco também usou as redes sociais para expor a situação, pedindo para que, se mais alguém tivesse passado pela situação, informasse, para que ocorresse "um encaminhamento sério e coletivo a questão". A Polícia Civil relata que a agressão foi cometida por um homem porque uma das duas jovens estava urinando junto a uma árvore na Praça do IAPI. O caso foi registrado em boletim de ocorrência, mas o homem não foi identificado.
Porto Alegre também tem um bloco composto exclusivamente por mulheres, com uma pauta que vai além do Carnaval. O Não Mexe Comigo que Eu Não Ando Só é integrado por mais de 100 mulheres e terá saída no dia 21 de abril. A jornalista Bebê Baumgarten ressalta que um dos objetivos é condenar o machismo e todo tipo de violência contra a mulher, e o bloco tem no repertório músicas como Maria da Vila Matilde, conhecida na voz de Elza Soares, um hino contra a violência doméstica.
Veja algumas campanhas contra o assédio deste Carnaval
"Respeita as mina. É simples."
É o conceito da campanha #CarnavalElesPorElas, realizada pela ONU Mulheres, com o suporte do Comitê Nacional Impulsor ElesPorElas HeForShe. Com o objetivo de provar que assédio não é paquera e que a diferença entre as duas abordagens é o respeito, divulga frases como: "Se a mulher veste roupas curtas, significa que ela está querendo vestir roupas curtas" e "Quando a mulher falar que quer curtir a festa com as amigas, significa que ela quer curtir a festa com as amigas".
"Não é não"
A frase virou até tatuagem temporária. Já foi vista em blocos de cidades como São Paulo, Rio de Janeiro e Salvador, inclusive no corpo de celebridades como Leandra Leal, Marina Person e Mariana Ximenes.
Governos se engajaram
A prefeitura de Vitória lançou campanha para alertar os foliões sobre o assédio contra a mulher durante o Carnaval, com frases como "Depois do não é tudo assédio" e "Fantasia não é convite". O Estado do Rio de Janeiro lançou a campanha "Carnaval é curtição, respeita o meu não", com parcerias com as concessionárias de ônibus e metrô.
Na propaganda de cerveja
Se em 2015 a Skol veiculou campanha que dizia "esqueci o meu 'não' em casa" e foi criticada por organizações de defesa da mulher, neste ano sua propaganda mostra que "chegar pegando" no Carnaval não é a melhor opção, reforçando a diferença entre xaveco e assédio.
Versão de Anitta
O canal É Cena divulgou vídeo com uma versão de Vai Malandra, hit da Anitta. Na produção, mulheres cantam: "Se eu falar que eu não quero escute o não... Não vou mais aceitar, vou denunciar" e "Vai malandro, o assédio começa depois do não".