Em 1904, o poeta Konstantinos Kaváfis (1863-1933) publicou o poema À espera dos bárbaros, marco da poesia do século XX. Nascido em Alexandria (Egito), escreveu em grego a imagem de Roma no dia da invasão bárbara. Na tradução de José Paulo Paes, assim começa: "O que esperamos na ágora reunidos? / É que os bárbaros chegam hoje". Este hoje repercute e se reencontra com força no Brasil e na paisagem de Porto Alegre, com o adicional melancólico de que em nossa prosa histórica os bárbaros já chegaram, e opinam, desfilam, governam.
Kaváfis revela a cumplicidade entre os bárbaros e a elite: "Por que o imperador se ergueu tão cedo / e de coroa solene se assentou / em seu trono, à porta magna da cidade? // É que os bárbaros chegam hoje. / O nosso imperador conta saudar / o chefe deles. Tem pronto para dar-lhe / um pergaminho no qual estão escritos / muitos nomes e títulos." Assim se dá a coesão das elites, sobretudo em era de globalização – fluxo e refluxo, trocas de honras e favores, em que a nação é coadjuvante subordinada, e o povo, paciente irrelevante. O anúncio de medidas catastróficas costuma acompanhar-se de viagens e visitas, com sintonia em teses pactuadas e com o favor de mídia coordenada, e coroa-se com o brinde dos bárbaros, cá e lá, pois são a mesma gente.
"Por que não vêm os dignos oradores / derramar o seu verbo como sempre? // É que os bárbaros chegam hoje / e aborrecem arengas, eloquências." Ou seja, não me venham com textão! É que as análises de intelectuais perturbam, turvam a eficiência dos pactos. Mande-se o projeto, sem discussão ou argumento, patrola neles, pois morreram a política e a retórica. No festim dos bárbaros, não teremos voz, todavia ainda conversaremos nas ruas e redes, pois há muito a ser dito e mais ainda por fazer.
Ataque a instituições de cultura, ciência e informação. Pode haver barbárie maior? Diante dos desafios de compreender o mundo e criar possibilidades, opta-se por suprimir as fontes, o conhecimento e os instrumentos com que se pode adquirir potência e abrir novos caminhos. O que é um governante que não sabe o que fazer com uma emissora de rádio e TV operada por profissionais experientes? Um gestor que não sabe para que servem análises históricas sobre a economia regional? O governante de economia rural que extingue pesquisa agrotécnica? O administrador que descarta o conhecimento do meio natural, em época de mudança climática? O líder de um povo que desdenha o estudo e a preservação de seu folclore? O executivo que não pensa em produzir remédios, antes, em suprimir possibilidades, como se isto remédio fosse? Em momento grave, quando é preciso força, conhecimento e motivação, eis que se joga pá de cal no patrimônio, infundindo ainda mais pesar em um povo já angustiado por outras safras de males. Mas se a macaca Aurora, de Miguel Nicolelis, aprendeu a usar controle remoto, por que um humano não aprenderia?
Ampliou-se a nação bárbara. Não estão apenas com "(…) togas de púrpura, bordadas, / e pulseiras com grandes ametistas / e anéis com tais brilhantes e esmeraldas"; incluem os que teclam na área de chats dos portais notícias (imagem escabrosa da estupidez). Será que é no reconforto daquela gente ignara que sonham os bárbaros que hoje têm caneta? Basta-lhes a ilusão de apoios desinformados, em tudo carentes? Erro nosso, ainda não conseguimos educar nossos bárbaros, que decidem seguir arruinando.
"Por que subitamente esta inquietude? / (Que seriedade nas fisionomias!) / Por que tão rápido as ruas se esvaziam // e todos voltam para casa preocupados?" Os bárbaros chegaram, mas há barricadas que tentam deter a tomada de Roma, e as ruas ainda são veias onde circula um sangue cívico inteligente, antídoto contra essa invasão funesta.
* Francisco Marshall escreve mensalmente no Caderno DOC.