Há mais de 15 anos, resolvi: ia mudar pra São Paulo. Não tinha nada concreto, nada armado, apenas a minha vontade incrível de sair da cidade que me sufocava. Eu não queria trabalhar com publicidade e trabalhava, não queria estudar jornalismo e estudava, não queria mais dividir a vida e dividia, não queria viver sob uma sombra e vivia. Não era nada daquilo que eu queria pra minha vida. Precisava ir embora. E fui. Dez discos, dez livros, dois pares de sapatos e duas malas grandes. Um microquarto de fundos em Pinheiros e toda uma cidade me abrindo as pernas e as possibilidades. Eu sentia a eletricidade do ar e passava perrengue, fazia novos amigos e sexo como se não houvesse amanhã, e, bom, não havia, sempre só há o hoje quando se tem os vinte e dois anos que eu tinha. Disso veio meu primeiro romance, que escrevi com a mesma pressa que vivia naquela época. E vieram as ilusões de ser uma escritora, uma incrível síndrome de Bandini delirante pensando em dominar a cidade e todos nela.
É claro que nada disso aconteceu, eu era uma mulher escrevendo no Brasil, uma jovem mulher no começo dos anos 2000 escrevendo e vivendo hedonisticamente, isso nunca daria certo, e eu fui despejada, levei um pé na bunda e achei que fosse morrer de amor romântico pela primeira vez. Nunca morri. A cidade é uma personagem neurótica e constante na minha obra, jamais acolhedora, sempre opressora. Não sei até quando e nem sei como, mas sigo viva por aqui. Sinto que ela tentou me chutar para fora algumas vezes, mas comigo não é assim: ninguém manda em mim. Nem São Paulo. Eu vou embora quando eu quiser.
Já quis. O Rio de Janeiro sempre me acolheu tão bem, era como se fosse um amante que me confortava da vida abusiva com um marido horrível que eu vivia prometendo largar. Dessa vez eu fico, meu amor, dessa vez eu deixo aquele homem para trás, vamos ver apartamentos, vamos fazer planos, vamos, vamos, eu e você, dessa vez vamos ficar juntos. Mas toda vez que voltava para São Paulo ia ficando, ia ficando, até hoje ficando. Toda vez que chego no Rio, penso: por que eu não moro aqui? E toda vez que voo por cima de São Paulo, penso: já volto, meu bem.
Sinto muito por minhas cidades queridas nessas eleições. Senti muito quando Dória, uma caricatura de milionário que se diz "gestor" e não político, ganhou de lavada do Haddad, um prefeito que conseguiu humanizar um bocado essa São Paulo sempre tão dura, tão sem vida. Dória ficou me parecendo até bom quando Crivella, sobrinho do Edir Macedo, bispo da Igreja Universal do Reino de Deus, ganhou no Rio. O Rio da diversidade, o Rio do Carnaval, o Rio do turismo, o Rio de tantos. É evidente o projeto de poder da bancada fundamentalista (não dá pra chamar de evangélica, são uns fanáticos que querem tomar o poder, não apenas pessoas com crenças), que vem formando sua própria milícia, os "Gladiadores do Altar". Sim, isso é real, e, segundo os registros policiais, a igreja é a maior compradora não estatal de armas automáticas no Brasil.
E senti muito por Porto Alegre também. Marchezan pai era da Arena, Marchezan filho já recebeu dinheiro de empresas ligadas à Lava-Jato. Quer dizer, posso nem voltar pra casa em paz, e também não posso voltar a ser a jovem hedonista que com nada se importa. Agora já era. Agora eu vou ter que lutar pelo que acredito, ou nada mais fará sentido. Nem escrever, essa grande paixão que, independentemente da cidade, nunca me deixou e que começou bem ali, naquela Feira do Livro que neste domingo me recebe pela primeira vez. Quinze anos. Uma vida. Eu, outra, ela, a mesma.