Nota da Redação: morador de rua que vende livros usava o nome do irmão e é foragido. Leia mais
A aparência e o peso do livro determinam o preço: volumes grossos, novos ou bem conservados custam mais. Os pequenos, amarrotados ou encardidos, menos. Lindomar Jaido Gaieski, 46 anos, tem mais de uma centena de títulos dispostos sobre um cobertor e pedaços de papelão, em uma calçada da Avenida Protásio Alves perto da esquina com a Rua Carazinho, no bairro Petrópolis, em Porto Alegre. O acervo é sortido: autores locais, estrangeiros, clássicos, best-sellers. Morador de rua, Lindomar se sustentava vendendo material para reciclagem até perceber que ganharia mais oferecendo direto ao público, e não a sebos, os exemplares que encontrava no lixo. Abandonou a rotina de catador e reinventou-se como livreiro, sem nunca ter pisado em uma livraria.
A coleção, composta por doações de passantes, é transportada em um carrinho de supermercado, que ele cobre com plástico durante as noites ao relento, protegendo o ganha-pão da chuva e do sereno e tentando despistar eventuais gatunos. Lindomar não chegou a concluir a 5ª série do Ensino Fundamental. Lê com boa fluência, mas confessa que não é dado ao hábito – nunca percorreu as páginas de Pablo Neruda, Jonathan Franzen, Simões Lopes Neto, Tolstói, Balzac e Paulo Coelho que exibe à freguesia com valores entre R$ 3 e R$ 25. Se tiver de escolher algo para passar o tempo, na jornada de trabalho que se estende das 6h às 19h, prefere os gibis de Cebolinha, Mônica e Cascão que de vez em quando aparecem. Confessa estar ali pelo negócio, não pelo amor às letras:
– Esse é o melhor trabalho. Num dia bom, tiro R$ 80. Antes, tinha dias em que não tirava nem R$ 10. Faço isso porque me dá o lucro. Posso conseguir uma cama boa, um banho.
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Lindomar persegue sempre o mesmo objetivo: arrecadar pelo menos R$ 60 em vendas para garantir o pernoite em um hotel do Centro que inclui janta e café da manhã. Por R$ 50, consegue apenas o pouso. Se supera a meta, permite-se fazer uma refeição extra. Caso o movimento seja ruim, procura um matagal ou terreno baldio para dormir – evita lugares movimentados por já ter sido agredido com gravidade duas vezes.
Na tarde desta segunda-feira, quando conversou com a reportagem, havia arrecadado apenas R$ 40 até as 15h e estava pessimista: o turno mais rentável é o da manhã. Para não comprometer o projeto de descansar sob um teto e tomar dois banhos – "um quando chego e um quando saio, aproveito bem" –, deixou de pagar R$ 13 por um prato feito e se contentou com uma rapadura de R$ 2.
– Às vezes vendo 20, 25 livros num dia. Em outros, nem três – contabiliza.
Lindomar deixou Áurea, no norte do Rio Grande do Sul, quando o pai morreu e a divisão da herança provocou desentendimento entre os irmãos. Partiu caminhando rumo a Porto Alegre, numa viagem que durou 36 dias. Casou, adquiriu uma residência em Viamão, trabalhou como segurança. Com o fim do relacionamento, foi para a rua, onde calcula viver há mais de 20 anos. A relação com a única filha, de quem não sabe informar com precisão a idade, é conturbada.
– Eu sou uma pessoa assim: se receber um "não", não volto lá naquele lugar. Se a cobra me mordeu, eu não volto lá para ela me morder de novo – justifica.
Nos cinco meses em que vem atuando no ramo literário, Lindomar aprendeu o pouco que sabe por dedução, a partir do que buscam e comentam seus clientes. Acredita que Agatha Christie, Erico Verissimo e Chico Xavier sejam nomes bem conhecidos do público. Ergue um exemplar de A escolha, de Nicholas Sparks, e comenta:
– O mais famoso é esse, chegou hoje. Autor famoso tem que dar uma aumentadinha. Esse é R$ 7, mas se não sair, baixo para R$ 6. Tu pode baixar R$ 1, não pode baixar R$ 2, porque aí desvaloriza o livro – ensina. – O que aparece eu coloco aí. Às vezes penso que o livro não presta, mas a pessoa chega e se interessa.
Há ocasiões em que o livreiro não valoriza tanto o número de páginas e o estado de conservação e se deixa levar por critérios mais subjetivos na hora de estipular os valores, caso de um exemplar de Sharon Sala.
– Esse é R$ 8. Não foi pela boniteza do livro, foi mais pelo título: Lembre-se de mim – explica.
Moradora da vizinhança, a relações-públicas Sandra Viero se aproxima para perguntar se Lindomar tem interesse em apostilas de um curso pré-vestibular, utilizadas pelos filhos anos atrás. O vendedor ouvira falar que livros didáticos encalham, mas acaba aceitando uma sacola cheia.
– Acho admirável a maneira de ele levar a vida. Está sempre aqui – elogia Sandra.
Lindomar sonha com um novo negócio. Gostaria de comprar uma bicicleta com suporte para vender água, café e refrigerante. Indica um ponto de táxi próximo e diz enxergar ali um mercado com bom potencial. Enquanto se vira para dar conta de um dia de cada vez, reclama da fome, mas se considera, de certa forma, um privilegiado.
– Muitos estão por aí destruindo as vidas. E eu tô aqui, tranquilo, conservando a minha.