No Pages, café e livraria em uma casa de madeira de três andares no bairro mais antigo desta cidade, um refúgio literário floresceu para os jovens árabes exilados - principalmente sírios, mas também iraquianos, líbios e iemenitas que fugiram dos problemas de seus países e se estabeleceram aqui.
As prateleiras são tomadas por traduções em árabe de Orhan Pamuk, Jack Kerouac, Gabriel García Márquez e Franz Kafka. Dois romances sírios são particularmente populares: No Knives in This Citys Kitchens ("Sem facas nas cozinhas desta cidade", em tradução livre), sobre uma família que vive sob a tirania, e The Shell ("A Concha"), sobre um detento de uma prisão síria.
Leia mais:
ZH mostra jornada de família de migrantes sírios na Europa
Como o Oriente Médio se tornou um terreno fértil para o fundamentalismo muçulmano e o terrorismo
Paulo Fagundes Visentini: o enigma do Estado Islâmico
- Essa é a geração da revolução em todo o mundo árabe. Eles querem saber por que tudo aconteceu, e não acreditam na imprensa - disse Samer Alkadri, pintor e designer gráfico de Damasco que abriu o café em julho com a mulher, com estoques de livros árabes que importou de uma editora de Beirute, no Líbano.
O café e o jardim dos fundos também são ponto de encontro para discussão da questão que domina a vida dos sírios aqui: ficar, ou embarcar na perigosa jornada por mar para a Europa. A pergunta parece ser mais importante agora que foi fechado um acordo entre a Turquia e a União Europeia visando conter o fluxo de refugiados para o continente.
A Europa enfrenta uma crise depois que quase um milhão de pessoas, em 2015, fizeram a travessia marítima perigosa da Turquia para a Grécia, por isso buscou a ajuda turca. A UE, de acordo com o pacto assinado recentemente, oferece mais de US$ 3 bilhões em ajuda ao governo turco para serem gastos na melhoria da vida dos sírios, como a construção de escolas e centros de saúde, com a esperança de que muitos escolham ficar e construir suas vidas aqui.
Quatro das cinco pessoas que trabalharam para Alkadri quando o café foi aberto estão agora na Europa; ele, no entanto, decidiu ficar.
- Fiquei porque quero voltar para a Síria. Talvez amanhã, talvez daqui a 10 anos. Depois dessa guerra terrível, precisaremos de gente para reconstruir o país.
Para muitos sírios, a decisão de permanecer na Turquia vai depender do fato de ela cumprir sua promessa de permissão de trabalho legal, o que poderia aumentar seus salários e, como muitos esperam, garantir um caminho para a cidadania. Basil Qali, 19 anos, deixou um subúrbio controlado pelo governo sírio em outubro e, em uma manhã recente, estava varrendo o chão de um café em Istambul. Trabalha 13 horas por dia e ganha o equivalente a cerca de US$ 280 por mês.
- Aqui você trabalha para ganhar só o que gasta com comida - ele disse.
Disse que ficaria na Turquia se pudesse ganhar mais dinheiro e ter uma chance de cidadania, mas, por enquanto, só pensa na Europa.
- Não adianta falar sobre o que está acontecendo na Síria porque sabemos que vai durar mais cinco ou 10 anos. O negócio então é falar sobre chegar à Europa, ganhar dinheiro e poupar.
Outro jovem sírio em Istambul, Mohammed Sayid, 20 anos, trabalha como entregador de um restaurante local. Ele disse que o pai apoiou a rebelião na Síria e acabou sendo executado pelo governo. Sayid aprendeu turco e espera ficar, desde que o governo faça mais para melhorar sua vida, permitindo-lhe trabalhar legalmente. Ele se queixa de discriminação - as garotas nos bares o ignoram quando descobrem que é sírio - mas está hesitante em se juntar aos amigos na Europa.
- Já vivo aqui como estrangeiro há muito tempo. Não estou preparado para ser forasteiro de novo em outro país - disse ele.
Apesar de um êxodo recente, ainda há quase 2,2 milhões de refugiados sírios na Turquia, o maior número entre os países da região que os acolheram. Apenas em Istambul, há cerca de 350 mil, escrevendo seu próprio capítulo na história de uma cidade que há tempos é lugar de exílio. Há muitos anos eles fazem parte da vida da metrópole, abrindo cafés, atuando como músicos de rua nas avenidas mais movimentadas e mendigando nas esquinas, exibindo seu passaporte sírio como apelo à caridade dos transeuntes. Talvez desde o fim da I Guerra Mundial, quando os muçulmanos fugiam da Grécia e dos Bálcãs e os russos escapavam da revolução bolchevique, as ruas de Istambul nunca tiveram tantos imigrantes.
Os sírios aqui dizem que começam a se sentir otimistas devido à vitória do Partido da Justiça e Desenvolvimento, do presidente Recep Tayyip Erdogan, nas eleições parlamentares, em novembrode 2015. Em geral, gostam de Erdogan por manter a política antiga de abrir as portas da Turquia aos refugiados; antes da eleição, temiam que os partidos de oposição, hostis aos estrangeiros, tivessem sucesso nas urnas.
- Ele abriu as portas para os sírios - disse Alkadri sobre Erdogan.
No Pages, Mohammed Kayali, 32 anos, trabalha na promoção do café na mídia social. Já fez a viagem para a Europa, para a Suécia em 2012, mas voltou. Quando perguntado sobre o motivo, disse apenas "Culpa de sobrevivente. E o clima", acrescentou. Quando os amigos que pensam em fazer a viagem pedem sua opinião, Kayali lhes diz:
De uma maneira ou outra, você vai se arrepender.
Contou que, na Europa, por causa de programas sociais generosos, "a subsistência é garantida, mas não uma vida boa". Com isso, ele se refere à perda de identidade.
- Você tem que mudar muito - ele disse.
Na noite das eleições em novembro, quando ficou claro que o partido de Erdogan se aproximava da vitória, Kayali pegou o telefone e ligou para sua noiva, que também está na Turquia.
E disse a ela: "Nós vamos ficar".
Leia mais artigos do Caderno PrOA