Meu filho diz que pizza, mesmo se estiver ruim, sempre é boa. Concordo. Pizza é uma grande invenção da humanidade e provavelmente uma das coisas mais próximas da perfeição em termos de sabor. A gente pode fazer versões mais saudáveis ou alterar ingredientes de acordo com o gosto pessoal. Mesmo assim, a receita básica - massa, molho, queijo e alguma coisa (ou nada) - gera uma combinação imbatível. É um mistério, se quiserem, a maneira como pizza produz felicidade nas pessoas.
Ciência não é assim. Ciência tem que ser boa. Existem diferentes ferramentas para se fazer ciência, algumas mais fortes que outras. Se usarmos apenas ferramentas com pouco poder, a ciência fica fraca. Já o uso de outras ferramentas, mais poderosas, nos permite criar uma ciência forte. Mesmo se usarmos uma ferramenta poderosa, mas de forma incorreta, a ciência fica fraca. Força neste caso indica que compreendemos um fenômeno natural e podemos inclusive prever, com bastante certeza, que algo vai acontecer. Isso gera segurança para produzir tecnologia, para que possamos, por exemplo, construir uma cidade, fazer uma cirurgia ou viajar no espaço.
Existe um nível de fazer ciência, usando uma ferramenta interessante da matemática, a correlação. Medimos uma coisa em relação a outra, e vemos se estão correlacionadas ou associadas. Elas tendem a acontecer juntas. Por exemplo, consumo de carne e câncer. Começa com observações, alguém nota que comunidades com consumo de carne têm mais incidência de câncer, por exemplo. Podemos medir o uso de carne e a incidência de câncer em uma população, ou em várias populações, em vários lugares do mundo, incluir milhões de indivíduos, incluir várias idades, ou olhar apenas entre gaúchos e verificar o quanto um coincide com o outro. Isso nos dá cada vez mais poder de previsão. Contudo, mesmo que dois fenômenos estejam associados, e isto é muito importante: não quer dizer que um causa o outro. Os cientistas que foram bem treinados sabem disso.
As correlações podem ser por acaso. Existe um estudo australiano que analisou
associações entre variações diárias da temperatura do asfalto e o número de cesarianas. E houve associação, embora não tenha como uma coisa estar causando a outra.
Se o número de medidas que você faz for enorme, ou se você coleta mal suas amostras, e o resultado apontar associação, pode ser por acaso. Se você achar que encontrou a verdade, isso é ciência ruim. A ferramenta não é forte o suficiente, e periga atazanar a vida das pessoas se você usar isso para fazer política pública da sua aldeia ou do seu país.
Quando se diz que o zika causa microcefalia, hoje, ainda é uma evidência fraca. Como é algo muito perigoso, é preciso tomar medidas públicas e ao mesmo tempo investir em fazer a ciência forte, usar ferramentas poderosas. Uma delas, detectar material genético do vírus na placenta e no embrião, é forte. Mas ainda não quer dizer que o vírus causa o problema. Um exemplo seria isolar o vírus e testar em diferentes tipos celulares para ver o que o vírus faz. Por exemplo, se causa problemas de malformações em embriões de peixes, aves ou ratos. Melhor ainda, quando o cientista consegue determinar o mecanismo pelo qual uma coisa assim acontece. Procure essa palavra nas coisas de ciência que você lê: mecanismo ou rota. Se sabemos a rota, ou o caminho, sabemos muito. Sabemos como algo acontece. Essas são ferramentas fortes, que podem nos dar essas respostas. No caso do vírus, esses estudos têm de ser feitos em paralelo com todas as medidas de prevenção.
Agora, quando o cientista é bom, e usa uma ferramenta forte, acontecem maravilhas. Como Einstein prevendo, décadas atrás, com o uso de ferramentas matemáticas bem mais poderosas que a correlação, que a gravidade deveria ter ondas e que elas deveriam ser detectáveis. E na semana passada detectaram isso pela primeira vez.
Sempre me impressiona como os físicos conseguem usar a matemática de forma a fazer previsões muito precisas, tipo, ali deve ter um planeta, e 30 anos depois a gente tem um telescópio potente o suficiente para ver o planeta. Na biologia, ainda não conseguimos isso com tanta precisão, porque as variáveis são muito complicadas. A ciência boa nunca acaba em pizza. Embora seja comparável, isso sim, à pizza de Nápoles - algo que enleva, maravilha, inspira e reafirma nossa esperança na humanidade.
*Cristina Bonorino escreve mensalmente no Caderno PrOA.
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