*Jornalista, crítico de cinema, membro da Associação dos Críticos do RS
Se a emergência de um cinema na África, feito por africanos e para africanos, é inseparável dos movimentos independentistas que marcaram o início dos anos 1960, isto se deu devido a uma virada fundamental de perspectiva. Se as instâncias coloniais europeias que ocupavam o continente, durante a primeira metade do século 20, eram as responsáveis pela maioria das imagens que transbordavam das colônias, o nascimento dos cinemas africanos marca a ruptura definitiva com o modelo de representação ocidental da África e dos africanos. As experiências de descolonização, as diásporas e o neocolonialismo conferem, portanto, um ponto comum para grande parte dos cinemas que vão surgindo em vários países.
Com exceção do Egito e da África do Sul, já independentes desde a primeira metade do século 20, o cinema na África colonial não era, obviamente, realizado por africanos. Mesmo nestes dois países, a relação cultural com os ingleses sempre manteve presentes as estruturas de legitimação e autoridade civilizatória. É com um regime de imagens violento e silenciador que cineastas como Ousmane Sembène (Senegal), Med Hondo (Mauritânia), Sarah Maldoror (Angola), Moustapha Alassane (Níger) e Ola Balogun (Nigéria), para ficarmos com alguns exemplos, vão procurar romper com tudo aquilo que o imaginário euro-americano, no contexto de uma história das imagens, sempre buscou cobrir de acordo com uma representação una e indivisível, como a imagem sempre alegórica e acessória de negros e árabes, das figuras dos filmes do Tarzan, das paisagens do deserto do Saara às savanas, do primitivismo aos "rituais tribais", da força bruta do corpo negro à sensualidade do seu movimento, em suma, todo um conjunto universalizante de imagens, modelos e pensamentos sobre a África.
Com as independências dos países da África Ocidental, ocorre então um descolamento em relação ao olhar do colonizador, quando a África deixa de ser um pano de fundo para americanos e europeus contarem suas aventuras e suas histórias de amor sob um esquema de exotismo. O processo significa que a narrativa, ou melhor, o controle da narrativa é tomado pelos africanos para os próprios africanos. Altera-se o lugar de enunciação. A ideia base da etnografia, como quem se confronta com outra cultura para melhor entendê-la (e, neste contexto do "colonialismo científico", para melhor dominá-la), não pode mais dividir o mesmo espaço com as potências libertadoras que se abriam e ansiavam pela autodeterminação também do cinema a partir de projetos nacionais emancipadores.
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Mas como os cineastas lidaram no início e lidam na contemporaneidade com essas questões diante de públicos que tiveram as suas formações cinemáticas majoritariamente forjadas por imagens que não eram as suas? Como, ao mesmo tempo, construir imagens positivas da África, em contragolpe ao repositório de imagens negativas que a colonialidade legou? Para entendermos os desdobramentos políticos e estéticos que estes temas assumem na obra de realizadores contemporâneos como Abderrahmane Sissako e Mahamat-Saleh Haroun (cujos últimos filmes, Timbuktu e Grigris, nosso circuito ignorou), é necessário perceber como os cineastas vêm lidando, ao longo dos últimos 60 anos, com questões como o colonialismo, o neocolonialismo, as diásporas, as narrativas de retorno, as desilusões com as estratégias revolucionárias socialistas, as aberturas das economias nacionais e as representações contemporâneas das realidades sociais africanas.
Um dos pontos em comum entre as várias gerações de cineastas africanos ao longo das últimas seis décadas é o compromisso com a construção das identidades nacionais. Mas essa é somente uma das reivindicações que serão feitas, e as formas de abordagem dos assuntos se modificaram ao longo dos anos. Os cinemas africanos não permaneceram estáticos desde que Sembène fez A Negra de..., em 1966. Se os escritos de Frantz Fanon, Aimé Césaire, Léopold Senghor e Amílcar Cabral atravessaram gerações de cineastas e tomaram novos contornos, novos usos discursivos, é porque os cinemas africanos acompanharam o movimento do mundo sem, no entanto, se desprenderem de suas questões, como por muitas vezes a crítica ocidental "reclamou".
Para compreender os cinemas africanos de hoje em sua diversidade é necessário, então, trazê-los para os seus contextos, mas não pretender, com isso, reduzi-los aos mesmos temas, motivos e estilos que mobilizaram os pioneiros. Reconstruir, através de uma história da memória, percursos estilísticos, formais, temáticos e ideológicos, e compreender quais as soluções narrativas (como através da figura do griô) que os mais diversos cineastas encontraram para resolver essas e outras questões.
Alguns destes aspectos serão discutidos na Mostra Cinemas Africanos, que será realizada na Ulbra Canoas na próxima semana, com exibições de cinco filmes seguidas por debates com críticos de cinema e pesquisadores africanistas. A seleção de filmes contempla desde o seminal A Negra de..., de 1966, até produções mais recentes, como o angolano Na Cidade Vazia (Maria João Ganga, 2004). O evento é gratuito e aberto ao público.
Mostra Cinemas Africanos
De 9 a 13 de novembro, às 19h, na Ulbra Canoas - auditório do prédio 59 (Odontologia). Entrada franca.