* Professora titular de Imunologia da PUCRS e pesquisadora 1C do CNPq.
Quem nasceu depois de 1990 talvez não entenda do que estou falando, mas houve um tempo em que a maioria das pessoas tinha problemas ao manusear computadores, principalmente porque precisávamos codificar os comandos para qualquer ação. Salvar um arquivo? Procurar um documento? Transferir de uma pasta para outra? A tela preta e o tracinho piscando no velho sistema operacional (DOS) encantava alguns, mas intimidava muitos. Mouse? Não existia, tudo era digitado. Internet? O que é isso exatamente?
A informática, no início dos anos 1990, já revolucionava conceitos e rotinas, mas o salto definitivo foi o surgimento dos sistemas operacionais "amigáveis". Primeiro o Mac OS, e em seguida o Windows, tornando a manipulação dos computadores intuitiva, através de dicas visuais, pulando etapas trabalhosas. Dali aos smartphones, passou tudo tão rápido que ficou apenas um borrão na memória. Toda essa história - que se desenrolou em 20 anos, gerou guerras patentárias, negócios bilionários e hoje é tema de filmes - ensaia repetir-se agora em outra área: a biologia.
Como na informática, progressos na área da genômica são velozes, embora os resultados ainda não sejam tão óbvios para o usuário médio - em parte por falta de entendimento de como afetam nosso dia a dia. Mas uma legítima revolução aconteceu recentemente, com a descoberta de um sistema que nos permite sondar e manipular o DNA de forma rápida e fácil, chamado CRISPR. Sobre essa sigla, já se negociam bilhões de dólares e travam-se na justiça disputas acirradas sobre vários aspectos das patentes que podem ser geradas. Biólogos ao redor do mundo concordam que nada nesse campo jamais será o mesmo. As principais revistas científicas publicam semanalmente artigos sobre a necessidade de discutir aspectos éticos e regulatórios, mas trazem também artigos já utilizando a tecnologia confortavelmente - revelando resultados surpreendentes.
Pesquisa científica no Brasil é menosprezada
O debate alastrou-se do meio científico para a sociedade, não apenas pelos potenciais perigos que toda tecnologia para modificação genética implica, mas também pelas possibilidades, antes impensáveis e hoje muito reais, de curar facilmente doenças diversas. Afinal, o que é isso, de onde veio e qual a realidade sobre os ganhos potenciais e os riscos?
Poderíamos dizer que o CRISPR permite que sejamos hackers genéticos - entrar no genoma e alterar a programação muito mais rápida e facilmente do que já foi possível, usando um sistema que evoluiu em bactérias para resistir aos vírus que as infectam.
Curiosamente, como costuma acontecer, tudo começou de forma não intencional, em 2005, quando pesquisadores de uma companhia dinamarquesa de alimentos, hoje adquirida pela Dupont (gigante produtora de sementes modificadas), analisavam o genoma de bactérias que utilizavam para fazer iogurte. Os pesquisadores, liderados por Phillipe Barrangou, notaram que as bactérias mais resistentes - e portanto mais úteis - tinham em seu genoma sequências curtas repetitivas e palindrômicas agrupadas (Clustered Repeated Interspaced Short Palindromic Repeats: CRISPR). Uma investigação mais detalhada revelou, em alguns anos, que se tratavam de sequências de vírus com os quais as bactérias eram infectadas e que elas guardavam como memória.
Iniciação científica pode impulsionar carreira ainda na graduação
Ao entrar em contato com o vírus que contivesse essa sequência novamente, a bactéria ativava um sistema de enzimas - como a Cas9 - que clivava o material genético do vírus. Completamente diferente do sistema imune de outros organismos que já conhecíamos, e contudo com a mesma função. As pesquisadoras que desvendaram isso, duas da Universidade da Califórnia em Berkeley, Jenifer Doudna e Jill Banfield, e a francesa Emmanuelle Charpentier, patentearam o sistema pensando no potencial para testes diagnósticos de vírus. Publicaram seus achados na Science em 2012, e seguiram-se uma enxurrada de premiações, milhões de dólares captados para as empresas de biotecnologia que fundaram e sua inclusão na lista das 100 pessoas mais influentes no mundo pela revista Time. Enquanto isso, a DuPont anuncia que alimentos editados com CRISPR estarão em nossas mesas em menos de cinco anos. Eles também patentearam usos do sistema para modificar sementes e probióticos.
Paralelamente, um pesquisador do Massachussets Institute of Technology (MIT), Feng Zhang, trabalhava em uma versão do CRISPR altamente focada. As pesquisadoras que descobriram o CRISPR descreviam o seu mecanismo de ação. Zhang queria ser o primeiro a usar o sistema para editar genomas humanos. Ele escreveu essa patente, com esse foco, e o MIT depositou-a logo após a de Berkeley. Contudo, o depósito do MIT entrou numa categoria acelerada - para a qual se paga uma taxa a mais no depósito (!) e ele ganhou a prioridade. Isso importa muito no meio da propriedade intelectual, e vale muito, muito dinheiro. Qualquer empresa que quiser trabalhar com algum organismo outro que não bactérias, precisa licenciar a patente de Zhang. Bilhões de dólares estão em jogo, e ambas as instituições entraram com recursos e digladiam-se na justiça pelos direitos. Todos os pesquisadores fundaram startups de biotecnologia que vêm recebendo capital de investidores, como a megafarma Novartis. Mas quem conseguir a patente de editar células humanas vai com certeza ser o centro das atenções.
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Por que trabalhar com CRISPR é tão mais fácil? Embora a manipulação genética seja, já há algum tempo, uma realidade tecnológica, ela envolve passos complicados e laboriosos.
Várias etapas envolvem cultivar microorganismos que carregam o material genético que queremos duplicar, produzir ou interromper. São necessárias diversas reações de "recorte-e-cole" moleculares. Durante esses passos, alterações imprevisíveis podem acontecer e introduzir erros, nos levando a realizar monitoração constante - e muitas vezes de volta ao ponto zero, tendo de reiniciar todo o processo.
Manipular organismos inteiros ainda é complicado tecnicamente, comparado a manipular uma célula. Com o CRISPR, diversas dessas etapas tornam-se obsoletas. Precisaremos apenas do que se chama de uma sequência guia de material genético - que é sintetizada por uma máquina - e da enzima - seja a Cas9, sejam novas que estão sendo descobertas - que realiza sozinha os cortes e inserções no genoma, algo para o que antes precisávamos de várias enzimas diferentes, reações químicas diferentes, vários passos de purificação. Um processo que levaria semanas ou meses pode ser resolvido em algumas horas. Mesmo com repetições e monitoramento, a rapidez e a praticidade são incomparáveis. E modificar um organismo inteiro com CRISPR já é possível desde o ano passado. No mesmo tempo que levávamos para modificar um gene em um animal, podemos agora fazer centenas. DOS versus Mac OS (ou Windows, pra quem prefere) - simplesmente não há como retornar ao passado.
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A maioria dos artigos fora do meio científico tem dado um clima de juízo final para o uso do CRISPR. Isso é um pouco de exagero. O sistema ainda tem problemas e precisa ser ajustado para um funcionamento mais reproduzível. Ele mais resolve problemas de uma tecnologia que já existe - a biotecnologia - do que propriamente inventa uma nova roda. Contudo, por ser tão simples, elegante e eficiente, possui uma qualidade intrínseca de virada de jogo. E inevitavelmente vai evoluir de forma rápida - muitos suspeitam que ainda estamos apenas arranhando a superfície de um grande iceberg.
Os aspectos éticos dessa facilidade em editar o genoma, contudo, permanecem em debate. Se agora ainda relutamos em introduzir um vírus atenuado em uma pessoa para corrigir um defeito genético, qual seria o efeito do uso do CRISPR a longo prazo, que realiza o mesmo efeito, apenas mais rapidamente? Os pessimistas apressam-se em predizer que seremos altamente irresponsáveis. Vamos afinal desenhar nossos bebês de acordo com o gosto estético? Vamos transformar um elefante em um mamute e montar um parque de diversões estilo Jurassic Park?
A dificuldade de tirar uma discussão altamente técnica de dentro do campo da biologia e trazer para o meio social é que a maioria das pessoas não tem informação para construir uma opinião sobre o assunto e fica à mercê dos extremos opostos, distópicos e utópicos, profetas do apocalipse e do nirvana. Na verdade, qualquer tecnologia pode ser usada para o bem ou o mal, para tornar a vida das pessoas melhor ou pior, seja ela nuclear, genética ou informática. Por isso, precisamos educar não apenas a população, mas os políticos que tomam decisões sobre esses assuntos diariamente, influenciando as nossas vidas e o futuro de nossos filhos e netos.
Recentemente, uma pesquisa mostrou que 90% dos americanos acha importante que políticos entendam de ciência para tomar decisões informadas. Neste momento, em particular, fica difícil pensar em um cenário destes no Brasil, mas esse deve ser o caminho a buscar - conhecimento, ao invés de aceitação passiva ou rejeição desinformada de modificações definitivas que ocorram no tratamento e prevenção de doenças ou ainda na nossa alimentação.
Como nosso cérebro nos torna quem somos
Temas como a edição de embriões ou a guerra biológica sempre vêm à mente em situações como essa. O editorial da Nature desta semana fala que o debate precisa sair do laboratório e tem de ser do tipo que vemos em filmes - e que já ocorrem na realidade, como a conferência Dark Winter, em 2001. Será preciso que cientistas, governantes e especialistas em futuro de diferentes áreas reúnam-se para um exercício como em uma simulação ou jogo, tentando antecipar os desafios que possam ocorrer nos diferentes cenários possíveis, planejando estratégias de resposta a cada um. Se evoluem os problemas, precisam evoluir as soluções.
Historicamente, na biologia, a cada 20 anos ocorrem descobertas como essa, que varrem a área pela profunda inovação tecnológica que trazem. Foi assim com os anticorpos monoclonais nos anos 1970, que permitiram identificar moléculas com alta especificidade e hoje tratam doenças infecciosas e tumores. O PCR, nos anos 90, nos permitiu amplificar o material genético que não conseguíamos detectar e revolucionou diagnósticos. E agora o CRISPR. Afivelem os cintos e estudem para não ficar para trás. Os próximos 20 anos serão emocionantes.
A sigla da hora
O desenvolvimento do CRISPR é um dos assuntos mais discutidos e comentados nas publicações especializadas em ciência nos últimos meses. As possibilidades abertas pela ferramenta "editora de DNA" já renderam capas nas publicações científicas Science e Nature e na descolada Wired - entre outras. A tecnologia também já gerou uma guerra de patentes entre dois institutos diferentes de pesquisa e vêm entusiasmando cientistas ao redor do mundo por suas aplicações no tratamento de doenças. Já a repercussão fora do meio acadêmico tem privilegiado o tom apocalíptico.