Recentemente, circularam na internet fotos íntimas do ator Stênio Garcia e de sua mulher, Marilene Saade. Eram imagens simples, tiradas com um celular, mostrando ambos nus diante de um espelho no quarto. O fato trouxe à tona toda uma série de discussões, de questões jurídicas relativas à exposição involuntária da intimidade à sexualidade na velhice e até questões de gênero, já que os comentários teriam sido mais agressivos em relação ao corpo da mulher. Mas por que fotos de nudez, sobretudo de famosos, têm esse poder de atração irresistível, a ponto de não conseguirmos evitar olhar e reagir, mesmo que em segredo?
Poderia se pensar que não há nada mais natural que um corpo nu, como defendem os adeptos do naturismo. Afinal de contas, apesar dos avanços das técnicas reprodutivas, seguimos chegando pelados ao mundo. Porém, no processo civilizatório ao qual somos submetidos desde pequenos - primeiro pela família, depois por outras instâncias sociais -, nossa relação com o corpo vai se transformando. Aprendemos a conter certos impulsos e a discernir o que podemos fazer e mostrar em público. O corpo nu vai sendo relegado a espaços ditos íntimos, confinado ao quarto ou banheiro, até obter certa alforria com o início da vida sexual.
Não há nada de natural na nossa relação com o corpo: ele se constitui a partir do olhar, do toque e da palavra do outro. As diferenças em como se lida com o corpo são evidentes não apenas entre pessoas, mas também entre sociedades. É natural em países como Suíça ou Alemanha despir-se em praças no meio da cidade para tomar sol. Já no Brasil, um simples topless na praia pode render reprimendas das sutis às descaradas, sem contar cantadas dos mais diversos calões. A diferença não é tanto entre os corpos em si, mas entre os olhares que recaem sobre eles.
O olhar sobre o corpo é também parte essencial do sexo - não à toa nunca faltam espelhos nos motéis. Em certa medida, somos todos um pouco exibicionistas e voyeurs, porque o desejo se constitui a partir daquilo que foi condenado a se esconder e não tocar. Poder brincar na intimidade com o que em um contexto público é proscrito - mostrar e olhar o que normalmente não se dá a ver - é parte do encanto do erotismo. Não apenas à mesa se come com os olhos, mas também na cama. Por essa dimensão visual da sexualidade, dispositivos com câmeras têm feito parte da vida sexual de muitos, no próprio ato ou na troca de imagens.
Quando essas imagens escapam do contexto de intimidade em que são produzidas e compartilhadas, porém, se dá o efeito traumático. O olhar do outro, presente apenas virtualmente na cena erótica através das lentes, subitamente se materializa nos olhares reais que a testemunham. Arrancada da cena em que a nudez é aceita - seja na fantasia erótica, em uma performance teatral ou um exame médico -, ela fica exposta à severidade do olhar que nos faz escondê-la na maior parte do tempo. Muitos já experimentaram essa sensação em pesadelos em que nos vemos pelados em público. Não à toa Marilene disse sentir-se violada: nosso olhar, representando essa censura, não era para estar vendo-os nus no espelho.
Nesses tempos dominados pela imagem, são os famosos que encarnam os espelhos nos quais nos miramos. Não à toa, o nude de um famoso se espalha nas redes sociais como pólvora acesa: escrutinamos seus corpos e suas vidas com a mesma minúcia e severidade com que o fazemos conosco. Por isso, a reação ao corpo e à nudez alheia costuma falar mais de nós do que do outro. Quem julgou com agressividade ou deboche a nudez prosaica de Stênio e Marilene talvez precise se perguntar sobre sua própria relação com o corpo e o erotismo. Como escreveu cheio de ironia Bertrand Russell, crítico feroz de nossos pudores hipócritas, a nudez é chocante para as pessoas de bem - assim como a verdade.
*Paulo Gleich escreve mensalmente no caderno PrOA.
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