* Doutor em Ciências Biológicas (Bioquímica) pela UFRGS. Professor do Departamento de Biofísica e membro do Centro de Biotecnologia da UFRGS.
Câncer é uma das doenças mais variadas e complexas que existem e por isso é muito pouco provável que seja descoberta uma cura definitiva. O que a ciência já conseguiu foi encontrar muitos tratamentos, alguns dos quais têm sucesso em curar alguns tipos de cânceres em estágios determinados. Novas terapias são desenvolvidas de várias fontes e testadas primeiro em células tumorais crescidas em cultura, usando recipientes plásticos; depois em animais, geralmente camundongos; e só depois, se os resultados forem muito bons, em humanos. Somente quando os testes em humanos forem satisfatórios, é que o novo tratamento pode ser usado para os fins para o qual foi testado.
Muito está se noticiando sobre o uso da fosfoetanolamina, um composto bastante simples e de fácil obtenção, no tratamento do câncer. Esta informação está baseada em estudos realizados por grupos da Universidade de São Paulo que mostraram que a fosfoetanolamina reduz o crescimento de células em cultura e também em alguns modelos animais. No estudo a que tive acesso, a fosfoetanolamina foi tão potente quanto as terapias normalmente usadas para o tratamento de melanoma. Isto é um dado bem interessante, mas infelizmente não significa que ela cure o câncer, uma vez que os tratamentos aos quais foi comparada, taxol e etoposídeo, infelizmente não curam melanoma metastático em humanos. Curar câncer em animais é mais fácil do que em humanos, muito provavelmente porque cânceres testados em animais são até mil vezes menores, e muito mais simples do que aqueles descobertos em humanos.
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É muito importante ter claro que curar o câncer em modelos animais não significa que o mesmo tratamento vá curar a doença em todas as pessoas tratadas. É quase certo, aliás, que isto não vai acontecer. Mas, se um tratamento pode curar um câncer em um animal sem causar muita toxicidade, como é o caso da fosfoetanolamina, é um ótimo candidato para ser testado em humanos. Estes testes são feitos de forma regulamentada e envolvem vários níveis, desde os iniciais, de dose e toxicidade, até aqueles que englobam várias instituições, para verificar a eficácia do novo tratamento. Existem protocolos bem definidos e que precisam ser seguidos para que tratamentos possam ser aprovados. Um novo medicamento normalmente leva de 10 a 20 anos para ser desenvolvido, e custa na faixa dos bilhões de dólares.
Existe um histórico de usar terapias antes de finalizar todos os testes. Os antirretrovirais contra o HIV foram usados antes de todos os testes estarem concluídos, e isto beneficiou vários pacientes. Quando se tentou aplicar o mesmo processo para o câncer, infelizmente, os resultados foram catastróficos. Foi o que aconteceu com uma terapia muito agressiva de transplante autólogo de medula óssea, associada ao uso de quimioterápico. Como os resultados pareciam promissores em um laboratório da África do Sul, muitas pessoas entraram na justiça nos EUA para garantir o tratamento. Quando os resultados de vários outros centros de pesquisa foram finalizados, ficou claro que os pacientes tratados desta forma não viviam, em média, mais tempo do que os pacientes submetidos ao tratamento antigo, muito menos agressivo. Outra história trágica é a da mastectomia total - por várias décadas se fez esta cirurgia, tão agressiva que deformava mulheres. Quando finalmente se fez o estudo clínico comparando mulheres que fizeram ou não a cirurgia agressiva, não houve diferença no tempo de sobrevida.
Médicos contestam medicamento "milagroso" para tratar câncer
Estes problemas ocorrem principalmente porque o câncer é uma doença muito complexa e porque existem raros casos de regressão natural, mesmo entre cânceres muito agressivos. Isto ocorre, provavelmente, porque o sistema imune, que nos defende de vírus, bactérias e também do crescimento anormal de células, pode ser ativado a "enxergar" o tumor por um vírus ou uma bactéria. Se isto acontece, enquanto a pessoa está tomando algum medicamento, ela pode muito bem associar a cura ao medicamento. Só uma observação cuidadosa de muitas pessoas de forma bem controlada pode determinar se curas podem ser atribuídas ou não a um determinado tratamento.
É muito difícil se colocar na pele de alguém com câncer ou que tenha uma pessoa amada lutando contra a doença. Porém, a história mostrou que, sem testes clínicos bem controlados, é impossível dizer se um determinado tratamento que funcionou nas células e em modelos animais de laboratório, realmente vale a pena para pacientes com uma doença terminal. Por isso, é melhor lutar para que os testes em humanos possam ser feitos, para tratamentos promissores, do que exigir que uma universidade que fez uma pesquisa básica como a USP seja obrigada pela justiça a distribuir um medicamente que não foi nem testado e muito menos aprovado para tratar câncer em humanos.
A polêmica
> Um tratamento que usa a molécula de fosfoetanolamina para combater o câncer foi desenvolvido nos anos 1990 por Gilberto Orivaldo Chierice, professor de química da USP-São Carlos. As cápsulas à base de fosfoetanolamina foram produzidas e distribuídas por Chierice de graça - a distribuição era feita na própria USP-São Carlos.
> Em 2014, já com Chierice aposentado, o Instituto de Química da USP-São Carlos proibiu a produção e distribuição de medicamentos que ainda não houvessem sido aprovados em todas as etapas previstas na lei para a liberação de drogas de uso clínico. Isso teve efeitos na distribuição gratuita da droga.
> Em Santa Catatina, em junho, um homem foi preso ao tentar formar uma rede de distribuição gratuita. Com isso e com a suspensão da produção em São Carlos, começaram as batalhas legais.
> Pessoas com câncer têm entrado na justiça para garantir a distribuição, com base em vários depoimentos de pacientes que asseveram os efeitos curativos da droga. Liminares foram concedidas pelo STF e pelo TJ-SP ordenando a continuidade da distribuição. A USP-São Carlos tem obedecido, mas a direção da entidade publicou uma nota reiterando que a substância ainda não é uma droga devidamente testada e regulamentada.