
O chinês Jia Zhang-ke é um dos nomes mais importantes do cinema atual. Os filmes do diretor conjugam com raro equilíbrio drama íntimo e painel social, retratando com precisão aguda o zeitgeist contemporâneo - em particular, o singular estado de coisas na China pós-Mao. Entre as dezenas de prêmios internacionais do cineasta, estão o Leão de Ouro no Festival de Veneza, pelo filme Em Busca da Vida (2006), e o troféu de melhor roteiro no Festival de Cannes, pelo impactante Um Toque de Pecado (2013).
O brasileiro Walter Salles acompanhou com uma equipe de filmagem o realizador de 45 anos em visitas a cidades e vilarejos da região de Shanxi - incluindo Fenyang, terra natal de Zhang-ke - e em locais e eventos em Pequim. O resultado é Jia Zhang-ke, um Homem de Fenyang, documentário em cartaz no Espaço Itaú, na Capital. Em suas conversas, o diretor de Central do Brasil (1998) e Na Estrada (2012) contou com a interlocução do francês Jean-Michel Frodon - crítico que trabalhou no Le Monde e foi editor-chefe da revista Cahiers du Cinéma, parceiro de Salles na organização do livro de entrevistas e ensaios O Mundo de Jia Zhangke, lançado em 2014 (Cosac Naify, 320 páginas, R$ 59,90).
Na entrevista a seguir, Walter Salles define seu colega como um artista capaz de explorar com igual vigor e delicadeza tanto a subjetividade de seus personagens quanto sua circunstância histórico-social.
O que o levou a fazer um filme sobre o cineasta chinês Jia Zhang-ke?
No mesmo ano em que Central do Brasil passou em Berlim, em 1998, Jia Zhang-ke estreava seu primeiro filme no festival. Era Um Artista Batedor de Carteiras ("Xiao Wu"). Desde o início, ficou claro que Jia era um cineasta capaz de refletir com uma rara pertinência sobre as contradições do mundo - de um ponto de vista social, estético e existencial. E me apaixonei por Plataforma, o segundo filme de Jia, que acompanha uma trupe de jovens atores de teatro no Norte da China, durante 10 anos, de 1979 a 1989. Como todos os grandes filmes, Plataforma congrega diversos temas: é um filme dilacerante sobre os anos de juventude e a passagem para a idade adulta, mas também é um filme que reflete uma crise de identidade maior, a de um país em transe, a China que passava de Mao à lógica do mercado. Depois de Plataforma, acompanhei cada filme de Jia Zhang-ke, e cada um deles trazia a prova de que estávamos frente a um cineasta maior.
Como você conheceu Jia?
Nosso primeiro encontro mais longo foi em 2007, quando entrevistei Jia a convite de Leon Cakoff e Renata de Almeida, na Mostra de São Paulo. Conversamos sobre os cineastas caros a Jia, Antonioni, Bresson, Hou Hsiao Hsien. O homem era tão fascinante quanto a obra, e foi nesse momento que começamos a falar do livro e do documentário. Esperamos o momento certo para filmá-lo, quando nenhum de nós estava envolvido com outros projetos.
Zhao Tao, atriz-fetiche do diretor, em cena do recente "Um Toque de Pecado"
Foto: Paris Filmes, BD, 11/12/2013

Como foram as rodagens com o cineasta nas diversas cidades chinesas visitadas? Você já tinha um roteiro de filmagem detalhado e pré-definido ou ele foi sendo construído à medida em que o documentário ia sendo registrado?
A ideia foi acompanhar Jia em uma única e intensa viagem até Fenyang, sua cidade natal e fonte de inspiração de seus filmes, no norte da China. Tinha o desejo de fazer um filme sobre as diversas camadas da memória presentes na obra de Jia. As memórias de seus amigos e familiares que irrigam seus filmes, e também a memória de uma cidade em mutação que é Fenyang. Finalmente, quis convidá-lo a voltar às locações onde ele havia filmado, para trazer à tona uma terceira camada da memória. As lembranças das cenas que filmou, dos momentos que acabaram construindo os filmes que eu admirava.
Como você situa Jia no panorama do cinema contemporâneo? Com quais outros realizadores você acha que o cineasta chinês mais dialoga?
Penso que Jia Zhang-ke trouxe o cinema de volta para o centro do debate, no sentido em que seus filmes são instrumentos imprescindíveis para entender a extraordinária complexidade de seu país. Com a internet e as mídias sociais, o cinema deixou muitas vezes de trazer notícias do mundo, e os filmes de Jia revertem essa equação. Nenhum país mudou tanto em 20 anos, e ninguém o filmou como Jia Zhang-ke. Por isso, é difícil compará-lo a um outro cineasta contemporâneo.
Em seus filmes como nos de Jia, a questão do deslocamento e da identidade é fundamental na narrativa e nos personagens. Você vê semelhanças entre sua obra e a do realizador chinês?
O deslocamento, nos filmes de Jia Zhang-ke, não ocorre por causa de uma crise existencial dos personagens, como em Antonioni ou nos primeiros filmes de Wenders. O deslocamento ocorre por necessidade, porque as pessoas são obrigadas a se deslocar, como acontece em Em Busca da Vida. Nesse sentido, Terra Estrangeira seria o único filme que realizei com um ponto de partida semelhante. Não acho que exista similaridade entre os filmes de Jia e os que fiz. Prefiro pensar que o admiro justamente porque ele consegue reproduzir no cinema aquilo que eu não consigo alcançar, que é essa capacidade nos refletir de uma forma tão aguda.
Em nenhum momento do documentário você aparece ou se escuta sua voz. Já a figura do crítico francês Jean-Michel Frodon, que colaborou nas entrevistas, surge em algumas cenas. O que motivou a decisão de aparecer ou não no filme?
Sim, essa era uma opção clara desde o inicio. O filme era sobre Jia, e não sobre dois cineastas. Nesse sentido, o documentário é mais próximo estruturalmente do documentário de Limosin sobre Kiarostami (Abbas Kiarostami - Vérités et Songes, de 1994) do que do de Assayas sobre Hou Hsiao-Hsien (HHH - Un Portrait de Hou Hsiao-Hsien, de 1997). Jean-Michel foi um grande parceiro do projeto, o arquiteto principal do livro que fizemos com a Mostra e a Cosac Naify sobre Jia. Por problemas de agenda, ele só pode chegar no último dia de filmagem em Fenyang, mas esteve presente no trem e em boa parte das filmagens em Pequim. Trabalhamos a quatro mãos, de maneira fluida.
Os protagonistas de "Plataforma" (2000), o filme que colocou Jia Zhang-ke no mapa da cinefilia mundial
Foto: Artcam Internacional, Divulgação

Você poderia, por favor, comentar os seguintes filmes fundamentais da filmografia de Jia, Plataforma, Em Busca da Vida, O Mundo e Um Toque de Pecado?
Plataforma me impactou profundamente. Não esperava que um cineasta que filmava do outro lado do mundo pudesse falar de forma tão vertical de sentimentos ou situações que me pareciam tão próximas. A angústia do fim da adolescência e da passagem para a idade adulta, a crise de identidade, a orfandade de personagens que sofriam os efeitos da transição abrupta de uma sociedade planificada para o vale-tudo da globalização. O Mundo é uma potente reflexão sobre a implosão do tempo e do espaço com o advento da internet, e sobre a solidão dos tempos que vivemos. Em Busca da Vida é um filme sobre o resgate da memória individual, mas também coletiva. O filme acompanha personagens que tentam achar seus familiares entre as ruínas de cidades milenares, destruídas para dar lugar à maior barragem do mundo, a de Três Gargantas. Um Toque de Pecado é um filme sobre a irrupção da violência no mundo globalizado. Não descreve apenas a China, mas também situações que ecoam em outras latitudes, incluindo o Brasil.
Quais são seus próximos projetos?
Estou trabalhando em dois projetos. Gostaria imensamente de trabalhar novamente com Fernanda Montenegro, a maior atriz com quem tive o privilégio de colaborar. E com Gael Bernal, com quem vivi a experiência única de filmar Diários de Motocicleta.