* Professora titular de Imunologia da PUCRS e pesquisadora 1C do CNPq.
No auge da fraude do leite, em 2013, os funcionários do Lanagro, órgão do Ministério da Agricultura, viravam turnos para atender a demanda de análises para determinar as adulterações e repassar os laudos necessários para bloquear os lotes de leite comprometidos. O teste utilizado, padrão, disponível comercialmente, é laborioso e lento. Apenas para testar a contaminação por formol, os técnicos da instituição tem um limite de análise de seis amostras por dia, em um ensaio que usa 100ml (meio copo) de leite por amostra, e gera baldes de resíduos que precisam depois ser processados e descontaminados antes de ser descartados. Sem falar nos testes para os demais adulterantes além do formol. A direção voltou-se então para seu departamento de pesquisa, composto de cientistas mantidos com bolsas do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), órgão federal financiador de pesquisas científicas. A pergunta era se haveria possibilidade de desenvolver e validar rapidamente um teste que processasse um número maior de amostras por dia, com igual eficácia. Os pesquisadores idealizaram um ensaio utilizando um equipamento de última geração, disponível no Lanagro, e padronizaram em meses um teste que analisava dezenas de contaminantes ao mesmo tempo, utilizando um volume de leite mil vezes menor por amostra - um pingo de conta-gotas. Orgulhosos, direção e pesquisadores comemoraram o feito.
Há alguns meses, o CNPq anunciou que as bolsas dos pesquisadores do Lanagro seriam extintas em junho de 2015, devido ao corte de verbas que se propaga em ondas desde o início do ano em todas as instâncias de educação e ciência. Todo e qualquer avanço resultante do trabalho inovador dos pesquisadores não significava absolutamente nada para o governo federal - que vem, diga-se de passagem, custeando desde a universidade a educação e formação desses profissionais. Juntamente com esse teste, todos os demais desenvolvidos pelo corpo de pesquisadores foram suspensos. O teste de DNA que estava sendo desenvolvido ali para identificação de carne de cavalo contaminando a carne bovina, por exemplo, não poderá ser finalizado. Estaremos comendo hamburger misto: eqüino/bovino, como aconteceu na Inglaterra? Não saberemos, e os funcionários ficarão atendendo apenas as demandas da adulteração do leite - que continua, e forte, por sinal.
Esse é um exemplo típico do valor que o poder público dá para a pesquisa científica no Brasil. Não existe a mínima noção, nem entre governantes, nem infelizmente entre os outros setores da sociedade, do impacto social e econômico que a pesquisa científica tem. Da independência tecnológica e financeira que a ciência traz. Países desenvolvidos não são, como muitos podem pensar, resultado exclusivo de uma argúcia negocial que nós, "pobres coitados", não entendemos e de uma vocação imperialista que nós, "os justos", não possuímos. A verdade é que nesses países aprendeu-se há centenas de anos o valor que o investimento em educação, tecnologia e ciência têm para a economia - e que isso é poder.
Corte em verbas para educação paralisa pesquisa científica na UFRGS
Nos Estados Unidos, o National Institute of Health (NIH), correspondente ao que seriam aqui o CNPq e a Capes, possui um departamento dedicado a calcular o impacto econômico dos projetos de ciência que o governo financia. É deles o estudo que revelou, em 2011, que o investimento de US$ 3,8 bilhões do governo americano no Projeto Genoma Humano rendeu outros US$ 796 bilhões, criou 310 mil empregos e iniciou a revolução genômica mundial.
O estudo leva em consideração empregos diretos e induzidos, impostos arrecadados, surgimento de novas empresas, depósito e licenciamento de patentes, entre outros índices.
No início dos anos 2000, por exemplo, sequenciar todo o genoma humano era impensável - mais fácil ir até Marte, diziam - e hoje, as tecnologias geradas para essa empreitada possibilitam sequenciamentos de genomas inteiros em um dia, os resultados usados em diagnósticos de autismo ou câncer. Lamentavelmente, precisamos importar essas máquinas sequenciadoras dos Estados Unidos. Então, apenas nesse projeto, eles sabem que geraram US$ 141 por cada um investido, e alguns desses dólares vieram do nosso país, que compramos deles reagentes e máquinas. No Brasil, geramos despesas para fornecer um diagnóstico de última geração.
O Projeto Genoma Humano teve início no governo Clinton, e estendeu-se por dois mandatos Bush até o governo Obama. Isso nunca aconteceu no Brasil. Nossos gestores, eleitos, ignoram o significado desse tipo de investimento. Não existe planejamento, não existe projeto de independência econômica, pois não se considera, não se pensa, em ciência ou educação. É imperativo hoje que existam projetos de longo prazo, considerados comumente prioritários por gestores, educadores e cientistas, que não possam ser cortados ou extintos pelo próximo partido político que assumir a administração dos recursos.
O governo da Dinamarca recentemente anunciou um projeto de lei em que toda a agricultura do país deverá ser orgânica, pois define como prioridade para seus cidadãos a não alteração de seus corpos - e dos genes que passarão aos seus filhos - por pesticidas. Assim, a ciência na Dinamarca terá profundos efeitos sociais e econômicos não apenas naquele país, mas certamente, pelo menos, no resto da Europa. Os gestores, na Dinamarca, fazem doutorado, nas suas Universidades, que são reconhecidas mundialmente por sua excelência. Aqui, ignoramos a formação e a história das pessoas que dirigem instituições chave, e cujas chefias são distribuídas majoritariamente por interesses partidários, sem esperar jamais que trabalhem em prol da população. Como isso é possível, em 2015, quando toda a informação que necessitamos esta disponível online? Por que entregamos nossos destinos, e de nossos filhos, nas mãos daqueles que simplesmente não se importam?
E como mostram que não se importam! A proposta de extinção de órgãos de pesquisa como a Fepps e a Fundação Zoobotânica traz na sua raiz um profundo desconhecimento da história dessas instituições, do serviço que prestam, da pesquisa que desenvolvem. Como no exemplo do Lanagro, federal, a Fepps e a FZB estaduais contam com um grupo que faz a rotina, a manutenção de diagnóstico e patrimônio ambiental, mas mantém também grupos de pesquisa que há anos tentam implementar, apesar dos recursos pífios, trabalhando junto a universidades, formas de dar um retorno melhor que o mínimo para a população. Isso é absolutamente ignorado, por não se entender que o que fazem ali possua impacto social ou econômico. E poderia ter muito mais, se fosse aproveitada a experiência dessas instituições, gerada ao realizar atividades que envolvem diretamente a população, como diagnósticos de doenças infecciosas, banco de sangue, ou proteção de espécies nativas. Mercados completamente ignorados - e de alta relevância social.
Estímulo à pesquisa na universidade parte de colegas e professores
Tristemente, devido a essa cultura, nem mesmo o empresariado nacional acredita que existam cientistas no Brasil capazes de contribuir para o desenvolvimento de produtos e soluções para o setor produtivo. O Portal Pró-Inovação na Indústria Brasileira (Protec) reportou recentemente que empresas farmacêuticas brasileiras vêm adquirindo empresas de biotecnologia no Exterior. Em busca de tecnologias que não creem encontrar aqui. Estão desconectados governo, cientistas e setor produtivo.
Finalmente, nem o governo nem nossos empresários sabem que precisam investir também em projetos de pesquisa totalmente básica. A investigação livre, de assuntos aparentemente estapafúrdios, como a cor do olho das moscas, ou a idade do tempo, nunca desapontam em trazer descobertas inimagináveis. É a matéria-prima da inovação. Os capitalistas de risco, em países desenvolvidos, já sabem disso há anos e investem em projetos de ciência básica continuamente. Toda ciência gera, em si, conhecimento, que vem grávido de potencial para melhoria de vida e geração de novos recursos.
A pesquisa no Brasil se mantém hoje por pura teimosia de indivíduos que decidiram não se render ao cenário perturbador de reconhecimento zero do seu real valor. Cuja profissão nem mesmo é regulamentada. É difícil estimar o que é mais desolador: o que deixa de ser feito devido aos cortes; ou o que nunca foi feito, por absoluto descaso de todos os governos, federal, gaúcho, atuais e anteriores, em, no mínimo, cumprir leis de investimento em ciência. Por exemplo, a que define repasse de 1,5% da receita tributária do Estado para pesquisa científica - via Fapergs, nossa Fundação de Pesquisa.
Talvez o pior seja pensar no que poderia ter sido feito, em como nossas vidas poderiam não ser tão diferentes das dos habitantes de países que admiramos. Ou ainda, treinar com todo o carinho uma pupila ou pupilo brilhante, enxergar todo o seu potencial, mas concordar, no final, que provavelmente é melhor que deixem o país. Rumo a um lugar onde o valor do trabalho para o qual você os treinou é compreendido, e onde poderão, de fato, realizar descobertas que mudarão o mundo e, um dia, com sorte, também o Brasil.
Continue a leitura:
Vinicius Michaelsen: "Na crise, o primeiro corte é a pesquisa"